29 abril 2013

Ciência: razão ou religião?

Imre Lakatos

Durante séculos o conhecimento significou conhecimento provado – provado pela força do intelecto ou pela prova dos sentidos. A sabedoria e a integridade intelectual exigiam que o homem abrisse mão das afirmativas não-provadas e minimizasse, até em pensamento, o hiato existente entre a especulação e o conhecimento estabelecido. A força demonstrativa do intelecto ou dos sentidos foi posta em dúvida pelos céticos há mais de dois mil anos; mas eles foram intimidados e confundidos pela glória da física newtoniana. Os resultados de Einstein tornaram a virar a mesa e, agora, pouquíssimos filósofos ou cientistas ainda pensam que o conhecimento científico é, ou pode ser, o conhecimento demonstrado. Poucos compreendem, porém, que, com isso, toda a estrutura clássica dos valores intelectuais desmorona e precisa ser substituída: não se pode simplesmente jogar por terra o ideal da verdade demonstrada – como fazem alguns empiristas lógicos – reduzindo-o ao ideal da “verdade provável” nem – como fazem alguns sociólogos do conhecimento – à “verdade pelo consenso [mutável]”.
[...]

Fonte: Lakatos, I. & Musgrave, A. 1979 [1965]. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. SP, Cultrix & Edusp.

27 abril 2013

Balada do concurso de Blois

François Villon

Morro de sede perto da fonte,
Quente como fogo, tirito de frio,
Estrangeiro me sinto no meu país;
Junto ao braseiro, sinto escalafrios.
Nu como um verme, vestido como um presidente;
Chorando rio e desesperançado espero;
Reconforto-me com o mal da desgraça;
Regozijo-me e prazer nenhum sinto;
Sou poderoso sem poder e sem força;
Bem-amado e rejeitado por todos.

Nada me é certo senão o incerto;
Obscuro, exceto o que é evidente;
De nada duvido a não ser da certeza,
E em cada acidente a ciência encontro;
Ganho tudo, permaneço perdedor.
Ao fim do dia digo: “Deus lhe dê boa-noite!”
Deitado, tenho muito medo de cair.
Tenho muito do que nada tenho.
Herança espero e não sou parente de ninguém;
Bem-amado e rejeitado por todos.

De nada necessito, embora pareça
Procurar bens e isso não pretenda;
Aquele que mais docemente me fala é o que mai me irrita;
E o que mais me engana é o mais verdadeiro.
Amigo verdadeiro é o que me convença
Que um cisne branco é um corvo negro;
Quem me maltrata crê fazer-me um favor
Verdade e mentira, hoje, para mim é igual.
Retenho tudo, nada sei conceber:
Bem-amado, rejeitado por todos.

Príncipe clemente, agora talvez queiram saber
Que eu entendo muito, sem ter sentidos nem saber:
Parcial sou e a toda lei me submeto.
Que sei eu a mais? Meus compromissos vencer,
Bem-amado, rejeitado por todos.

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM. Poema publicado em livro em 1489.

25 abril 2013

Verão


Hans Thoma (1839-1924). Sommer. 1872.

Fonte da foto: Wikipedia.

23 abril 2013

Azul pela pedra


A palavra é azul pela pedra:
pela dureza que vai de um seixo
ao centro da montanha,
que vai de um paralelepípedo
aos húmidos rochedos que se ouvem
(porque nos falam) frente ao mar,
frente à pedra que é só pedra,
frente às paredes de gelo
que se transformam em pedra
ou num vislumbre de pedra.

A palavra é azul pela pedra:
a que se contempla, a que se retira,
a que se guarda,
a que se parte e reconstrói.
Azul sobretudo
pela pedra que nos fere e cega
pela pedra que dói.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1991.

21 abril 2013

Homem

H. Dobal

Sua ração de vida o homem vê minguando
a cada dia. Mas duro recomeça
como se o tempo lhe sobrasse. E vagaroso
não conta as eras que se extinguem.
Nem conta a solidão dos dias claros
se desdobrando iguais como esquecidos
de mudar. Nem a distância
que o grito não transpõe, a passagem da vida
cumprida só em mínimos desejos.
Sua lástima no piar das nambus, sóbrio
se esquiva às armadilhas da tarde.
A incerteza nos paióis, o chão batido
em que levanta sua casa, o amor
como a água das cabaças.
Lavrador do milho e do feijão, sua frugal colheita
em gleba alheia. Passa-lhe a vida,
e queima o céu com a cinza de suas roças.

Fonte (dois últimos versos): Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1966.

19 abril 2013

Retrato de um jovem compositor

Maynard Solomon

Beethoven era de baixa estatura, cabeça volumosa e cabeleira farta, eriçada e negra como carvão, emoldurando um rosto rubicundo onde a varíola deixara suas marcas. A testa era ampla e fortemente sublinhada por sobrancelhas hirsutas. Alguns contemporâneos dele opinam que Beethoven era “feio” e até “repulsivo” mas são muitos os que assinalaram a animação e a expressividade de seus olhos, capazes de refletir os sentimentos mais íntimos com extraordinária acuidade – ora cintilantes, cheios de brilho, ora toldados por uma indefinível tristeza. A boca era pequena e delicadamente desenhada. Tinha dentes brancos, que ele habitualmente esfregava com um guardanapo ou lenço. O queixo sólido era dividido por uma fenda profunda. De compleição robusta, tinha ombros largos, mãos fortes e peludas, dedos curtos e grossos. Sua constituição levou algum tempo para ganhar contornos cheios e arredondados, tendo ele permanecido magro até aos 30 e poucos anos. Carecia totalmente de elegância física; seus movimentos eram desgraciosos e canhestros, derrubava e quebrava coisas constantemente, e era propenso a entornar seu tinteiro sobre o piano. Ries perguntava-se como é que Beethoven conseguia barbear-se, pois suas faces andavam sempre cheias de cortes. Embora, após sua chegada a Viena, ele anotasse em seu diário o nome e endereço de um professor de dança, nunca conseguiu  aprender a dançar no compasso da música. “Todos os seus modos”, escreveu Frau Bernhard, “privavam pela ausência de sinais de polimento exterior; pelo contrário, era rude em sua maneiras e conduta”.
[...]

Na companhia de estranhos, Beethoven era “reservado, formalista e aparentemente soberbo”. Haydn não era o único que o considerava arrogante e despótico. Um depoimento fala-nos de sua “estudada rudeza” e diz que isso sugeria estar Beethoven “interpretando um papel”. O exterior defensivo mascarava uma frágil sensibilidade para as descortesias, reais ou imaginadas. Abandonaria ruidosamente um jantar aristocrático, tomado de intempestiva fúria, porque não lhe fora reservado assento na mesa principal. As atenções exageradas (ou falsas) perturbavam-no igualmente; numa ocasião, abandonou de súbito a casa de campo de um certo barão porque este o irritava “com sua excessiva delicadeza, e não suportava mais ser indagado, todas as manhãs, se estava passando bem”. Cherubini chamava-lhe “um urso grosseiro”; Goethe qualificou-se mais tarde como “uma personalidade profundamente bravia e insubmissa”.  Seus amigos mais chegados sofriam seus caprichos de humor e repentinas fúrias, as quais, na maioria das vezes, eram seguidas de expressões de ilimitado arrependimento. Seu mau gênio cruzava, ocasionalmente, a fronteira da violência física. Viram-no lançando ao rosto de um garçon uma entrée que não tinha pedido e cobrir uma governanta de ovos que ele achava terem-lhe sido servidos insuficientemente frescos.
[...]

Fonte: Solomon, M. 1987 [1977]. Beethoven: vida e obra. RJ, Jorge Zahar.

17 abril 2013

Caïn

Pethion de Villar

[P]osuitque Dominus Cain signum [...]
Egressusque Cain a facie Domini
habitavit profugus in terra – Gênesis 4:15-16.

Le carnage est fini: troués par la mitraille,
Noirs de poudre, étendus sur des flaques de sang,
Des cadavres partout, pêle-mêle, jonchant
La plane où s’engouffra la terrible bataille.

Et la nuit va venir: le grand frisson descend,
Au loin, mille vautours volent pour la ripaille;
L’Abandon, le Silence et le Néant qui baille;
Pas un cri de pitié sur cet égorgement!

A poil, sur un cheval monstrueux qui se penche,
Harassé, en flairant la puanteur des corps,
Il apparaît soudain, un Spectre à barbe blanche,

Tout nu, l’oeil assouvir, qui, le poing sur la hanche,
Solennel et muet, sans haine et sans remords,
Traversa lentement l’arène de la Mort...

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 5. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em 1897, com a dedicatória: ‘A M[onsieur]. Euclides da Cunha’. ‘Pethion de Villar’ é pseudônimo de Egas Moniz Barreto de Aragão.

15 abril 2013

Três mulheres na igreja


Wilhelm [Maria Hubertus] Leibl (1844-1900). Die drei Frauen in der Kirche. 1881.

Fonte: Wikipedia.

13 abril 2013

Calefrio aquerôntico

Detlev von Liliencron

Já bica o estorninho a sorva vermelha –
Jubilam violinos nas danças de agosto –
Não tarda que o Outono empunhe a tesoura
E corte uma a uma as folhas dos ramos.
Então se fará no bosque um vazio.
Um rio entre os troncos desnudos virá,
Trazendo à ribeira onde estou o barco
Que me há de levar ao frio silêncio.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.

12 abril 2013

Seis anos e meio no ar

F. Ponce de León

Nesta sexta-feira, 12/4, o Poesia contra a guerra completa seis anos e meio no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 202.820 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Seis anos e cinco meses no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Antioco Casula, Arthur C. Guyton, Enzo Tiezzi, John E. Hall, Richard E. Leakey, Robert Kanigel, Sosígenes Costa e William Bronk. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores:  Emil Carlsen, J. Alden Weir e Robert Walter Weir.

11 abril 2013

Inteligência, linguagem e a mente humana

Richard E. Leakey & Roger Lewin

Quando você fala com um bebê bem novinho, acontece uma coisa curiosa. Juntamente com o mexer dos bracinhos, o balbucio e os olhinhos vivos e arregalados que fazem sorrir até o mais sisudo dos adultos, o corpo do bebê agita-se com movimentos musculares coordenados, movimentos que só podem ser detectados com equipamento eletrônico muito sensível. Essa extraordinária resposta, só há pouco descoberta, é uma poderosa demonstração da profundidade com que a linguagem está enraizada no cérebro humano. Nesse bebê, toda uma constelação de minúsculos e quase imperceptíveis movimentos são gerados pelo cérebro, como resultado do som emitido pelo maravilhado adulto. Mais surpreendentemente ainda – mas talvez como reflexo inevitável – é a descoberta de que ocorre o mesmo fenômeno, qualquer que seja a diferença de nacionalidade entre o bebê e o adulto. Um bebê americano responde aos sons das línguas chinesa, russa, francesa, exatamente como aos sons da língua inglesa.

A linguagem falada é talvez o último e por certo o mais significativo passo na evolução do cérebro humano. A capacidade da comunicação oral eleva as possibilidades da educação infantil a novos e fecundos níveis, e é incomparável como veículo de desenvolvimento e transmissão da cultura. Embora seja possível uma tradição cultural mais ou menos rica em animais mudos, refletida num modelo concretizado em modificação física do ambiente e talvez combinado com alguma forma de comunicação por gestos, a linguagem falada, como nós a praticamos, amplia sem limites as sutilezas potencias da organização cultural.
[...]

Fonte: Leakey, R. E. & Lewin, R. 1980 [1977]. Origens. SP & Brasília, Melhoramentos e Editora da UnB.

09 abril 2013

A aranha


Num ângulo do teto, ágil e astuta, a aranha
Sobre invisível tear tecendo a tênue teia,
Arma o artístico ardil em que as moscas apanha
E, insidiosa e sutil, os insetos enleia.

Faz do fluido que flui das entranhas a estranha
E fina trama ideal de seda que a rodeia
E, alargando o aronhol, os elos emaranha
Do alvo disco nupcial, que a luz do sol prateia.

Em flóculos de espuma urde, borda e desenha
O arabesco fatal, onde os palpos apóia
E, tenaz, a caçar os insetos se empenha.

Vive, mata e produz, nessa faina enfadonha;
E, o fascinante olhar a arder como uma jóia,
Morre na própria teia, onde trabalha e sonha.

Fonte: Ricieri, F., org. 2008. Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. SP, Ibep. Poema publicado em livro em 1917.

07 abril 2013

Por que sonhamos?

Robert Kanigel

A cada noite que deitamos, insensíveis ao mundo exterior, com os globos oculares rolando sob as pálpebras fechadas, cenas e histórias dardejam em nossas mentes. Mas que função é exercida pelos nossos sonhos? A pergunta tem perseguido os seres humanos há milhares de anos.

Em 1900, Freud escreveu em seu livro A interpretação dos sonhos que a ciência contribuiu com “pouco ou nada que qualificasse a natureza essencial dos sonhos ou que oferecesse uma solução final a quaisquer de seus enigmas”. No começo dos anos 50, os pesquisadores do sono encontraram provas de períodos regulares de sono cheios de sonhos, chamados de sono REM (rapid eye movement), devido ao movimento rápido dos olhos que ocorre durante um total de duas horas a cada noite. Desde então, as informações têm-se acumulado. E, no entanto, a observação de Freud no começo do século bem poderia ser aplicada nos dias de hoje.

Talvez o sono REM sirva para “limpar” o sistema nervoso dos metabólitos depositados durante o dia. Outros sugeriram que sonhar é principalmente útil no início do desenvolvimento da criança, talvez por ajudar a estabelecer os circuitos cerebrais de que o feto e a criança precisam para processar informações. Seres humanos recém-nascidos, é sabido, passam cerca de metade de suas horas de sono sonhando, comparados com apenas quinze por cento no caso das pessoas na casa dos sessenta anos.

De qualquer forma, o que não faltam são teorias. Alguns ubíquos, outros bizarros, todos oferecendo farto material para cochichos ao amanhecer e revelações íntimas emanadas do divã do psiquiatra, os sonhos claramente convidam a teorias. Por que, conforme demonstram as provas colhidas num laboratório do sono, lembramo-nos de alguns sonhos e esquecemo-nos de outros? Por que sua lógica é bastante falha? Por que alguns temas são repetidos, tais como quedas e perseguições? E, o mais importante, por que sonhar? Uma síntese abrangente ainda não está ao nosso alcance, frustrada não tanto pelas provas conflitantes como pelas perspectivas teóricas que mal têm a ver umas com as outras.
[...]

Fonte: Leigh, J. & Savold, D., orgs. 1991 [1988]. O dia em que o raio correu atrás da dona-de-casa... e outros mistérios da ciência. SP, Nobel.

05 abril 2013

O inverno

Antioco Casula

Carregado de negros temporais
Vem o inverno, velho, triste e canoso.
E sem ervas está triste a pastagem
Os bosques nus e áridos.

Não há pássaros que alegrem as alvoradas
Em seus mil gorjeios delicados;
Somente o vento sopra nas narinas
E tristes convivem na distância.

Assim é a humana sorte: rindo
Foge o amor, vai-se o prazer;
Passa a juventude dia a dia.

Como um dia de maio sem vento.
Mas a dor, semelhante à neve,
Cai continuamente, fria e lenta, lenta.

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM.

03 abril 2013

Maçãs


Emil Carlsen (1853-1932). Apples. [s/d]

Fonte da foto: The Athenaeum.

01 abril 2013

Arranca-me os olhos


Arranca-me os olhos, e ainda te poderei ver.
Arranca-me os tímpanos, e ainda te poderei ouvir.
Sem pés, ainda poderei caminhar para ti.
Sem língua, poderei invocar-te a qualquer hora.
Arranca-me os braços, poderei abraçar-te
e agarrar-te com o coração, como se a mão fosse.
Pára meu coração e meu cérebro baterá com a mesma fidelidade.
E se meu cérebro incendiares,
então em meu sangue te carregarei.

Fonte: Peters, H. F. 1986 [1962]. Lou: minha irmã, minha esposa. RJ, Jorge Zahar. Poema publicado em livro em 1905.

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