10 agosto 2009

Uma faca só lâmina

João Cabral de Melo Neto

Assim como uma bala
enterrada no corpo,

fazendo mais espesso

um dos lados do morto;


assim como uma bala

do chumbo pesado,

no músculo de um homem

pesando-o mais de um lado


qual bala que tivesse

um vivo mecanismo,

bala que possuísse

um coração ativo


igual ao de um relógio

submerso em algum corpo,

ao de um relógio vivo

e também revoltoso,


relógio que tivesse

o gume de uma faca

e toda a impiedade

de lâmina azulada;


assim como uma faca

que sem bolso ou bainha

se transformasse em parte

de vossa anatomia;


qual uma faca íntima

ou faca de uso interno,

habitando num corpo

como o próprio esqueleto


de um homem que o tivesse,

e sempre, doloroso,

de homem que se ferisse

contra seus próprios ossos.


A.
Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

B.
Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.

E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.

Podes abandoná-la,
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.

Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.

E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:

a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que quanto menos dorme
quanto menos sono há,

cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.

(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)

C.
Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,

porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se em botam mais no músculo.

Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.

É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,

e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.

Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.

Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.

O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.

D.
Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré-baixa da faca.

Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.

Mas quer durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor

bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.

E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,

tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,

bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.

(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)

E.
Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura

(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).

Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.

Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.

Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja em algum páramo
ou agreste de ar aberto.

Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.

E nunca seja à noite,
que esta tem as mãos férteis.
Aos ácidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,

à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.

F.
Quer seja aquela bala
ou outra qualquer imagem,
seja mesmo um relógio
a ferida que guarde,

ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,

ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,

nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.

E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.

Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.

Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.

E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.

G.
Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde.

O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.

E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.

O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,

pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,

além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,

como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa

que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.

H.
Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.

Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:

umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;

palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.

Pois somente essa fraca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário

e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente

o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz ,
certa eletricidade,

mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.

I.
Essa lâmina adversa,
como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,

sabe acordar também
os objetos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.

E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria,
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.

Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.

Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera

despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas.

Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,

sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.

*

De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,

que mais condensa o homem

quanto mais o mastiga;


de volta dessa faca

de porte tão secreto

que deve ser levada

como o oculto esqueleto;


da imagem em que mais

me detive, a da lâmina,

porque é de todas elas

certamente a mais ávida;


pois de volta da faca

se sobe à outra imagem,

àquela de um relógio

picando sob a carne,


e dela àquela outra,

a primeira, a da bala,

que tem o dente grosso

porém forte a dentada


e daí à lembrança

que vestiu tais imagens

e é muito mais intensa

do que pôde a linguagem,


e afinal à presença

da realidade, prima,

que gerou a lembrança

e ainda a gera, ainda,


por fim à realidade,

prima, e tão violenta

que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta.

Fonte: Melo Neto, J. C. 1994. Obra completa: volume único. RJ, Nova Aguilar. Poema – dedicado a Vinicius de Moraes e que tem como subtítulo: ‘ou: serventia das idéias fixas’ – originalmente publicado em 1956.

6 Comentários:

Blogger Bruno RuffyMaru disse...

Nunca consegui alcançar o significado desse poema.

31/3/16 22:56  
Blogger O Velhinho in: disse...

Bruno, acho que ninguém, mas há quem o diga que!

24/5/16 17:19  
Blogger Viny.M disse...

alguém conhece alguma edição que contenha esse poema? Achei que ia ter em "Escola das Facas" mas me enganei =/

13/4/17 14:50  
Blogger Jazz disse...

Ele tenta descrever um sentimento forte que o impulsiona a viver,sentimento este que provém de uma grande mágoa, impossível de ser esquecida,e que está tao viva em sua memória que ele nem encontra palavras para descreve-la. Certamente uma desilusão amorosa foi a causadora dessa" angústia da alma" que ele descreve como lamina...e que ele tenta reverter a favor de sua escrita, utiliza como impulso para continuar mais atento e mais vivo. É uma dor direcionada ,ja que não pode ser esquecida

7/7/18 03:08  
Anonymous TIO GABRIEL disse...

Essa desilusão pode ser a própria morte, a representação de quem morre ao tentar se agarrar a vida uma faca só lamina. O vivo mecanismo do tempo sempre a passar e a pulsar como uma faca ferindo-lhe a carne no eterno fluxo para o futuro, inevitável irreversível.

8/10/18 09:16  
Blogger Andreia disse...

É algo que tortura sua trajetória, marca o tempo com o símbolo do relógio. A faca está nele, o fere e as vezes pode ferir. Vem de supetão quando menos espera, como uma lembrança ruim que corta sua carne. Muitas vezes a bala cumpre o papel da própria faca, porém menos significados, como: ferida e arma. A bala muitas vezes parece fazer parte do próprio personagem, não o alvejou, nasceu nele. É uma vida, uma trajetória no tempo do relógio que faz parte dele e o machuca, com o eterno retorno de algo que o dilacera, mas que também pode servir como arma para ferir o outro, talvez uma lembrança triste. Acho que a faca é uma mulher que ele ama, a bala uma ferida e o relógio o passar o tempo. Mas, quem sabe, a faca seja a morte.

12/11/19 01:19  

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