25 agosto 2017

Falsos problemas científicos

Felipe A. P. L. Costa

O papel de Ernst Mayr (1904-2005) na história da biologia não foi exatamente o de um inovador, como ele próprio parecia estar ciente. Escritor prolífico e longevo, ele talvez fosse mais bem descrito como um articulador, tanto em termos acadêmicos (e.g., reunindo e divulgando informações dispersas na literatura) como políticos (e.g., assumindo cargos de chefia e participando de comitês de avaliação).

No contexto da teoria sintética, Mayr sempre deu muita ênfase ao conceito de espécie e ao processo de especiação. Eis algumas noções que ele elaborou ou ajudou a burilar: (i) o reconhecimento da espécie como uma entidade real, em oposição a entidades arbitrárias, como gênero e família; (ii) o isolamento reprodutivo como uma barreira que segrega espécies que vivem juntas (simpatria), noção que serviu de base para a elaboração do conceito biológico de espécie; (iii) o isolamento geográfico como o principal estímulo à especiação; e (iv) o efeito do fundador e as revoluções genéticas como fatores que promovem a especiação, tipicamente em populações pequenas e isoladas.

Em maior ou menor extensão, no entanto, todos esses conceitos têm sido contestados ou relativizados, embora os livros-textos nem sempre deixem isso claro. Nesse sentido, cabem aqui as seguintes ponderações: (i) vários autores questionam a realidade da espécie, mesmo entre organismos que se só reproduzem de modo sexuado; (ii) o isolamento reprodutivo não é necessário nem suficiente para definir uma espécie; (iii) a especiação não depende de alopatria; e (iv) em muitos casos (a maioria?), a especiação seria o resultado de seleção, não de processos fortuitos.

O problema da espécie

Entre as barbeiragens cometidas por Mayr, Mallet (2008) observa que ele (talvez inconscientemente) ‘editou’ certos trechos da obra de Darwin incluídos em alguns dos seus escritos, de modo a ressaltar ‘deficiências’ no que tange ao conceito de espécie e ao processo de especiação. Ocorre que o ‘problema da espécie’, a respeito do qual Mayr escreveu bastante, tem se revelado um falso problema.

Para Darwin, explicar a multiplicação das espécies – “o mistério dos mistérios” – era um desafio. Mayr defendia insistentemente a ideia de que Darwin não chegou a propor nenhum modelo que pudesse explicar a origem das espécies, a ponto de outros autores passarem a reproduzir essa afirmativa (e.g., Futuyma 1992). Na verdade, um exame atento prontamente revela que Darwin adotou uma solução, embora, ao que parece, ela não tenha sido do agrado de Mayr. Em primeiro lugar, cabe notar que o naturalista britânico tratava o conceito de espécie com ceticismo. Por uma questão de conveniência prática, Darwin aceitava o que os especialistas reconheciam como espécies (e.g., Canis familiaris, Homo sapiens, Solanum tuberosum etc.) e, por isso mesmo, ele reteve a palavra em seus escritos. O fundamento biológico de sua posição não é difícil de entender: a distinção que há entre espécies afins é a expressão ‘madura’ da variação aparentemente contínua que observamos entre variedades de uma mesma espécie.

A genética do saco de feijões

Outro exemplo de barbeiragem envolve uma controvérsia – uma das várias discussões acaloradas em que Mayr se envolveu em decorrência de alguma opinião enviesada de sua parte. Incomodado com a profusão de modelos matemáticos – a respeito dos quais, aliás, tinha pouco conhecimento – e desgostoso com a crescente importância atribuída à genética de populações, Mayr virou-se contra o trabalho de alguns pioneiros, especificamente Fisher, Haldane e Wright.

Em suas palavras (Mayr 1959, p. 2; tradução livre):

A mudança evolutiva foi apresentada [pela genética de populações] essencialmente como uma entrada ou saída de genes, como a adição de alguns feijões em um saco de feijões e a retirada de outros. [...]
A mim me parece que a principal importância da teoria matemática foi que ela deu rigor matemático a afirmações qualitativas feitas muito anteriormente. [...] Contudo, eu talvez devesse deixar que os próprios Fisher, Wright e Haldane mostrassem o que eles julgam que sejam as maiores contribuições deles.

Mayr passou a se referir ao trabalho daqueles teóricos como ‘genética do saco de feijões’ (beanbag genetics). Alguns anos depois, Haldane terminou escrevendo uma resposta. Wright ficou chocado com o episódio e o seu relacionamento com Mayr, até então amigável, azedou. (Em 1984, voltando de uma viagem à Itália, Wright confidenciou a [James] Crow que o valor do prêmio que acabara de receber diminuiu muito depois que ele soube que Mayr havia sido agraciado no ano anterior.)

Fonte: Costa, F. A. P. L. 2017. O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna. Viçosa, Edição do autor. O texto acima combina passagens de dois capítulos do livro.

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