24 outubro 2016

Sobre a naturalidade das coisas

Mary Catherine Bateson

A reflexão clara sobre o mundo em que vivemos é dificultada por algumas confusões bastante primárias, novas e velhas, sobre o uso habitual das palavras natureza e natural.

Parecemos acreditar facilmente que é possível estar fora da natureza – que, com uma ajudinha lá de cima, conseguiríamos nos colocar acima das contingências comuns, fugir às consequências de nossos atos e nos livrar de maneira sobrenatural das realidades excessivamente naturais que são a doença e a morte. Alguns empregos dessas palavras parecem sugerir que é possível estar abaixo da natureza, como é o caso dos atos ‘não naturais’ (às vezes chamados de ‘subumanos’), ou pais não naturais (aqueles não amorosos ou que faltam com as obrigações da educação, sem nenhuma relação lógica com o ‘filho natural’, aquele nascido fora do arranjo culturalmente aceito que é o matrimônio).

Esses empregos têm em comum a ideia de que a natureza é algo do qual podemos nos afastar, contornar. Os problemas intelectuais gerados pela delimitação do domínio da ‘natureza’ provavelmente confundem mais do que aqueles criados pelo dualismo cartesiano, apesar de sem dúvida serem relacionados. Descartes estava interessado em definir um domínio para a ciência que estivesse livre da interferência eclesiástica: res extensa, matéria, o corpo físico, separado da mente ou espírito. O efeito disso foi a criação de duas formas de causalidade distintas e esferas de discurso separadas que devem de alguma forma ser reunidas. As definições populares para ‘natureza’ são mais confusas, mas igualmente insidiosas. Assim como com o dualismo cartesiano, elas tendem a enviesar o pensamento ético, a separar ao invés de incluir. Na cultura ocidental, já se considerou a natureza como algo a ser controlado pela humanidade, assim como o corpo deveria ser controlado pela mente.

Recentemente, nós complicamos a situação ao rotular mais e mais objetos e materiais, desde comidas até fibras e moléculas, como naturais ou não naturais. Isso cria um domínio limitado e disforme para o natural, carregado de juízos de valor subentendidos: o domínio sugerido no título The end of nature, de Bill McKibben, ou The American replacement of nature, de Irwin Thompson. No entanto, a natureza não é algo que pode acabar ou ser substituído, tampouco é possível ficar fora dela.
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Fonte: Brockman, J. & Matson, K., orgs. 1997. As coisas são assim. SP, Companhia das Letras.

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