09 setembro 2016

Harmonias de uma noite de verão

Raimundo Correia

a noite, a cair

Poeta! Ao longe entre as sangrentas pompas
Do crepúsculo tomba o sol. Das flores
Exala-se a alma em tépidos vapores...
Ouve-se além um sino, soam trompas
De caça, latem cães... Esta sublime
Tristeza funda, indefinita e vaga,
       Que o coração te esmaga,
Todos a sentem, mas ninguém a exprime!
Ninguém, poeta, exprime esta saudade,
       Que o ambiente satura
       E a terra e os céus domina;
Esta, de fel mesclada e de doçura,
Melancolia augusta e vespertina,
Que, com a sombra, avulta, cresce, invade
E enche de luto a natureza inteira...
Esse outro bardo, o sabiá, não trina
Nos galhos da cheirosa laranjeira;
E, ao silêncio e ao torpor cedendo, cerra
O dia os olhos no Ocidente absortos;
      E fuma um negro incenso,
      Que envolve toda a Terra
– Sepultura comum, túmulo imenso,
      Dos vivos e dos mortos...
E eu do trono das névoas, do cimério
Sólio de ébano, aos pés do qual, na altura,
Toda essa poeira cósmica fulgura,
Vou já descendo; e, aos poucos, lentamente,
      Arrasto, desdobrada
      Sobre este amplo hemisfério,
A minha solta clâmide tamanha,
Negra, como o remorso, e a que somente,
Da lua crescentígera e chanfrada
Aponta da unha luminosa arranha...

o poeta

Em vão de trevas todo o espaço inundas!
Povoam-no lucíferos insetos;
São terrestres estrelas vagabundas;
São pequeninas lâmpadas errantes;
São de um roto colar de fogo, iriantes
Àscuas soltas; são vividos e inquietos
      Carbúnculos alados;
São acesas safiras; são diamantes
Da grinalda dos sóis desengastados...
      Basta à minha pupila
O fanal dessas almas luminosas;
E eu, nas tuas entranhas tenebrosas,
Como uma sonda, os olhos aprofundo,
      Ó tétrica e tranquila
Noite! – e sinto em cada átomo invisível
Latejar novo, ardente e oculto mundo;
      E o idioma confuso,
O hino sem eco, o hosana intraduzível
Do ser, o mais rudimentar, traduzo,
Neste de trevas pavoroso oceano,
      Onde o espírito imerso,
Se debate arquejante, escuto, ansioso,
Toda a orquestra das vozes do Universo;
Desde as dos astros músicas supernas,
Até o salmo obscuro e misterioso,
Que escapa, como um monstro diluviano,
Pela estúpida boca das cavernas...

a noite

Entre as paredes lôbregas e frias
Do meu cárcere brônzeo e negro – furna
De lívidos espectros povoada
E pesadelos e visões sombrias –
      Tua alma enferma e taciturna
         Jaz encerrada.
      Em vão anseias, desta escura
Masmorra, anseias, neste instante, em vão,
Ver a maciça abóbada arrombada
         Por um trovão;
      Em vão anseias, nesta funda
Lapa, ver, como a luz da redenção,
Brilhar o fulvo e esplêndido montante
De um relâmpago enorme e rutilante,
Que te ilumine as trevas da loucura,
      Onde vasqueja, moribunda,
         Tua razão!

o poeta

Em vão sobre mim te elevas
E a luz da razão me espancas,
Ó noite! — e minha alma trancas
Neste túmulo de trevas!

Neste túmulo, onde jaz
Meu espírito indeciso,
Brilha às vezes um sorriso,
Treme um lampejo fugaz;

E então, do teu antro horrendo
Vão-se os monstros, que produzes;
Vão-se, uma por uma, as luzes
Da fantasia acendendo;

E, às intensas vibrações
Do sol, todo embandeirado,
Fulge, resplende o encantado
Palácio das ilusões...

Mas dura tudo um momento;
De novo em trevas me abismas,
Ó noite! e em mais fundas cismas
Recai o meu pensamento.

Vão-se a esperança e o sorrir,
– Vagas deste mar infindo,
Praias de ouro descobrindo,
Que tornam logo a cobrir...

Assim sobre as cinzas corre
Um sopro, e, efemeramente,
Faísca a brasa latente,
Arde, arqueja e, afinal, morre...

uma brisa da noite

   Se a tua fronte a febre escalda,
Vêm refrescá-la minhas asas. Estas
Asas as mesmas são, com que, as florestas
Atravessando, trêmula de amor,
Despertar, em seu ninho de esmeralda,
   As flores vou, distribuindo
   Um doce beijo a cada flor.
   Com estas asas o ar ferindo,
   O ar silencioso, rasgo no ar
   Uma torrente perfumada,
Onde bilhões de insetos, fosforeando,
As tênues asas de ouro vêm lavar...
É meu sopro, que, núncio da alvorada,
Vem refrescar teu cérebro incendido,
Brando e sutil, como é sutil e brando.
O anélito de um anjo adormecido.

o poeta

Intangível ideal! Cruel desejo
Insaciável! Essa, que além vejo,
      Ilusão fugitiva,
Brilha tão longe, tão além, que apenas
O olhar a atinge, e muito mal a atinge;
– Ave encantada, cujas ricas penas,
Cujas trêmulas asas, em cambiantes,
De uma longínqua aurora, a intensa e viva
Luz irisada, acatasola e tinge
      De cores flamejantes...
      Desejo insaciável!
      Inacessível sonho!
Julgo alcançá-la muitas vezes... Trago-a
Presa na mão; exulto a rir; suponho
Já possuí-la; apalpo-a... e ei-la, que voa,
E me escapa e me foge... Ei-la impalpável!
      É como o fluido, ou a água,
Por entre os dedos, que a retêm, se escoa...

uma ilusão

Alma jamais contente! Alma de poeta!
Atrás da pluma furta-cor, da inquieta
Asa de uma ilusão, eis-te a voar...
Estranhos climas e regiões estranhas
Atravessas com ela, afoutamente;
Desces aos vales, sobes às montanhas
E afrontas todos os tumultos do ar...
Alma de poeta! Alma jamais contente!
Se ela suspende o voo, o voo suspendes;
Abre ela as velas, e eis-te a todo o pano,
      Eis-te a subir com ela,
Tão alto... Abaixo a referver o oceano
      Serras d’água encapela...
E sobes mais.... com ela ao ninho ascendes
Das estrelas. No sol a fronte abrasas,
Como o condor. Nas nuvens e nos ventos
Bates as duras e possantes asas,
Rompendo o bojo dos bulcões violentos...
Por onde, em suma, ela, inconstante e vária,
Passou, tu sempre, ousada e temerária,
      Seu rastro ardente segues;
Mas, quando exausta cais, ela é já tua...
Pertence-te, apanhaste-a, é tua...
            Embora!
Já do encanto, que tinha, a vês tão nua!
Já, de perto, parece diferente
Da que vias de longe, essa ilusão!
Trás dela ias ansioso; e, alfim, consegues
Tê-la presa na mão... Mas eis, que agora
Já te aborreces, quando a tens na mão!
Alma de poeta! Alma jamais contente!
Em vão lutaste, combateste em vão!

o poeta

Cada ilusão é como uma esperança
De um bem, que tarde e que, afinal, se alcança,
De um bem, que, um dia, há de afinal chegar;
Enquanto este não chega e dura aquela,
      Goza-se mais com ela,
Do que depois, co’o bem, se há de gozar.

a esperança

Vem a meus braços, vem! Já, sobre o berço de ouro
De teus sonhos, soltar o perfumado, louro
E fúlgido lençol de meus cabelos vim;
Crava os olhos nos meus! Que horizontes sem fim
Neles descobrirás! Que abóbada infinita,
Onde, plena e perpétua, a Primavera habita!
Que céu de nuvens limpo e amplo, de norte a sul,
Eternamente belo, eternamente azul!

uma estrela funesta

Mente a Esperança! Mente a dádiva ilusória
Do Futuro! A radiante aparição da Glória
Mente! Empós desta, em vão, peregrinando vais
A agra região da dor! Longe é o alto! Jamais
Da Glória estrepitante a onda espumosa e brava
Virá rojar-te aos pés – branca e submissa escrava;
Para o diadema real, que sonhas, não produz
Diamantes Bisnagár, nem pérolas Ormuz.
Cingirás de irrisão e opróbrio uma coroa.
Tens acaso um amigo? O amigo te atraiçoa.
A mulher culto dás? Desdenha-te a mulher.
Não te será fiel teu próprio cão, sequer.
Bates de porta em porta, e vais de tenda em tenda,
Em vão! Nunca acharás uma alma, que te entenda!
Com quem teu negro pão compartas! que na dor
Seja a tua consocia! Uma só nívea flor,
Entre as pedras, jamais, brota do teu caminho...
E, andrajos arrastando, irás, roto e mesquinho,
Pela escura existência afora, sem ninguém,
Mudo e fitos no chão os olhos, como quem
Já descrente, afinal, na terra só procura
Um lugar, que lhe seja, ao menos, sepultura;
Mísero e vil, chegando até a recear
Que isso mesmo, também, lhe possa ela negar!...

uma alma compassiva

Poeta! Eu te reservo, alma que anseia e sofre,
A mais rara e melhor das jóias dó meu cofre;
Cristalizou-a a dor, e o seu vivaz clarão
Enche, como uma aurora, a tua escuridão;
Brilha mais do que um astro e mais do que um diamante.
Vou chorá-la em teu seio ardente e palpitante;
Recebe-a; sinto-a já, trêmula a reluzir:
Subiu do coração, dos olhos vai cair...

Fonte (parte da primeira estrofes): Bosi, A. 2013. História concisa da literatura brasileira, 49ª ed. SP, Cultrix. Poema – com a dedicatória ‘A Arthur Azevedo’ – publicado em livro em 1891.

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