19 fevereiro 2016

Poema terciário

Domingos Carvalho da Silva

Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem. Um rio
banhava o rosto da aurora.
Cavalos já foram pombos
na madrugada do outrora.

Onde há florestas havia
golfos oblongos por onde
tranquilos peixes corriam.
Uma lua alvissareira
passava à noite. E deixava
reticências de cometa
vagalumiando na relva
das margens, até à aurora
da Idade de Ouro do outrora,
quando cavalos alados
tinham estrelas nas crinas
alvas como asas de pombo.

O Verbo não existia.
Deus era incriado ainda.
Só as esponjas dormitavam
trespassadas por espadas
de água metálica, impoluta.
E as gaivotas planejavam
etapas estratosféricas
próximo as praias ibéricas.
E as montanhas desabavam
em estertores terciários,
em agonias de estrondo,
nas manhãs de sol atlântico,
quando cortavam as nuvens
– alvos, garbosos equinos –
esquadrões marciais de pombos.

Teu cabelo era ainda musgo.
Teus olhos o corpo frio
de uma ostra semiviva.
E tua alma sempre-viva
Sobrenadava o oceano
qual uma estrela perdida.

Teu coração era concha
fechada e sem pulsação.
E teu gesto – que é teu riso –
era um mineral estático
ainda não escavado
pelo mar duro e fleumático.

Cavalos já foram pombos.
E a prata que anda na garra
dos felinos, reluzia
em vibrações uterinas
no ventre da terra fria,
quando o dia era só aurora
e Deus sequer existia,
na madrugada do outrora.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema – com a dedicatória ‘a João Cabral de Melo Neto’ – publicado em livro em 1952.

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