20 agosto 2015

Ao canto do lume

António Nobre

Novembro. Só! Meu Deus, que insuportável mundo!
            Ninguém, viv'alma... O que farão os mais?
Senhor! a Vida não é um rápido segundo:
Que longas horas estas horas! Que profundo
            Spleen o d’estas noites imortais!

Faz tanto frio. (Só de a ver me gela, a cama...)
Que frio! Olá, Joseph! bota mais carvão!
E quando todo se extinguir na áurea chama,
Eu botarei (para que serve? já não ama...)
Às cinzas brancas, meu vermelho coração!

Lá fora o vento como um gato bufa e mia...
            Ó pescadores, vai tão bravo o mar!
Cautela... Orçai! Largai a escota! Ave Maria!
Cheia de Graça... Horror! Mortos! E a água tão fria!...
            Que triste ver defuntos a boiar!

Spleen! Que hei-de eu fazer? Dormir, não tenho sono,
Leva-me a carne a Dor, desgasta-me o perfil.
Nada há pior que este sonâmbulo abandono!
Ó meus Castelos-em-Espanha! Ó meu outono
D’alma! Ó meu cair-das-folhas, em abril!

A Vida! Horror! Ó vós que estais no último alento!
            Que felizes, sois prestes a partir!
Ó Morte, quero entrar no teu Recolhimento!...
Oiço bater. Quem é? Ninguém: um rato... o vento...
            Coitado! é o Georges, tísico, a tossir...

Mês de novembro! Mês dos tísicos! Suando
Quantos, a esta hora, não se estorcem a morrer!
Vê-se os padres as mãos, contentes, esfregando...
Mês em que a cera dá mais e a botica, e quando
Os carpinteiros têm mais obra p’ra fazer...

Oiço um apito. O trem que se vai... Engatar-te
            Quem me dera o wagon dos sonhos meus!
Lá passa, ao longe. Adeus! Quisera acompanhar-te...
– Boa viagem! Feliz de quem vai, de quem parte!
            Coitado de quem fica... Adeus! adeus!

Viajar? Ilusão. Todo o planeta é zero.
Por toda a parte é vil o homem e bom o céu.
– Américas! Japão! Índias! Calvário!... Quero
Mas é ir, à Ilha, orar sobre a cova do Antero
E a Águeda beber água do Botaréu...

Vi a Ilha loira, o Mar! Pisei terras de Espanha,
            Países raros, Neves, Areais;
Cantando, ao luar, errei nas ruas da Alemanha,
Armei na França minha tenda de campanha...
            E tédio, tédio, tédio e nada mais!

Que hei-de eu fazer? Calai essas canções imundas,
Cervejarias do Quartier! Rezai, rezai!
Paisagem, onde estás? Ó luar, águas profundas!
Ó choupos, à tardinha, altivos, mas corcundas,
Tal como aspirações irrealizáveis, ai!

Não me tortura mais a Dor. Sou feliz. Creio
            Em Deus, n’uma outra vida, além do Ar.
Meus livros dei-os, meu Filósofo queimei-o:
Agora, trago uma medalha sobre o seio
            Com a qual falo, às noites, ao deitar.

Espiritos! em vão, debalde por vós clamo:
Por que me abandonais? Ó almas, vinde a mim!
Às vezes, vindes consolar-me e não vos chamo,
E, hoje, não… Por quê? Traço o paralelogramo,
Extingo o lume, apago a luz: nem mesmo assim!

Ó almas do Outro-mundo! a minha alma anseia
            Pelo luar da lua de Canaã:
Quero passar o além que para além se alteia,
A nação de que a Terra é uma pequena aldeia
            E um lugarejo a Estrela da Manhã!

(E a chuva cai...) Meu Deus! Que insuportável mundo!
Viv’alma! (O vento geme...) O que farão os mais?
Senhor! A Vida não é um rápido segundo:
Que longas horas estas horas! Que profundo
Spleen mortal o d’estas noites imortais!

Fonte (versos 1, 20 e 26): Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 4. Brasília, Senado Federal. Versão publicada em livro em 1892; versão algo diferente apareceu na segunda edição (1898).

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