30 maio 2015

Que não se leve a sério este poema

Hilda Hilst

Que não se leve a sério este poema
Porque não fala do amor, fala da pena.
E nele se percebe o meu cansaço
Restos de um mar antigo e de sargaço.

Difícil dizer amor quando se ama
E na memória aprisionar o instante.
Difícil tirar os olhos de uma chama
E de repente sabê-los na constante

E mesma e igual procura. E de repente
Esquecidos de tudo que já viram
Sonharem que são olhos inocentes.

Ah, o mundo que os meus olhos assistiram...
Na noite com espanto eles se abriram.
Na noite se fecharam, de repente.

Fonte: Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1959.

28 maio 2015

Luna

F. Ponce de León

Chove.
A grama – deitada
na frente da casa –
fecha os olhos e sorri.

A terra
abre os braços: uma cova,
ao lado, acolhe o teu
pequeno corpo atropelado.

26 maio 2015

Afetos, desafetos... e um adeus

Maria Eugênia Carvalho do Amaral

Ela vinha de uma família pouco dada a manifestações afetuosas. Quando menina, sofreu – e mesmo adulta nunca superou a falta que sentia de um carinho. Foi um daqueles casos quase caricatos de carência afetiva.

O pai se atrapalhava todo ao dar um simples abraço. Por vezes, após meses sem vê-la, estendia a mão ao reencontrá-la, como para um aperto de mãos no mais formal dos encontros, apesar de estar visivelmente emocionado. Ela demorou a traduzir esses sinais desencontrados e compreender que ele a amava e não sabia como dizê-lo. O afeto paterno era evidente na atenção e no cuidado cotidiano, mas ele era tão exagerado em seu zelo que a sufocava na maioria das vezes. Não sabia demonstrar ternura e tampouco dosar qualquer gesto de preocupação, transparecendo apenas uma postura autoritária desagradável.

A mãe quase a enlouqueceu. Era seca e frívola, movida pelas aparências, preocupando-se o tempo todo com “o que os outros vão pensar”. E a pobre menina cresceu... amada pelo pai – que não sabia como mostrar tal amor – e desprezada pela mãe – que nunca conseguiu disfarçar como ela a incomodava com seus constantes apelos por afeto.

Conhecemo-nos no internato, há quase cinco décadas, e me tornei sua amiga e confidente. Dividíamos dores e doces que nossas famílias distantes mandavam. Estudávamos juntas – assim como aprendemos a fumar e a namorar. Nunca mais perdemos contato e fui a fiel depositária de suas tristes memórias. Fiquei sabendo que ela morreu na última terça-feira, em pleno Carnaval.

Minha amiga partiu em busca do afeto materno que não conheceu e do amor declarado de um pai. Foi embora da forma como viveu, em um desencontro de emoções – desta vez, ironicamente, como personagem de uma tragédia envolvendo a ela e a um carro desgovernado, com um Pierrô bêbado na direção. Minha amiga, o avesso de uma Colombina, partiu acompanhada pelo lamento rouco de uma cuíca.

Até quando alcoolizados inconsequentes continuarão ceifando vidas? Sonho com um Carnaval em que Colombinas e Pierrôs se encontrem, antes e depois da folia, e a vida continue, com nossa incessante busca pelo afeto.

Fonte: Amaral, MEC. 2014. Celebrando dezembro, janeiro, fevereiro... Campo Grande, Letra Livre.

24 maio 2015

Dentre todas as Almas já criadas

Emily Dickinson

Dentre todas as Almas já criadas –
Uma – foi minha escolha –
Quando Alma e Essência – se esvaírem –
E a Mentira – se for –

Quando o que é – e o que já foi – ao lado –
Intrínsecos – ficarem –
E o Drama efêmero do corpo –
Como Areia – escoar –

Quando as Fidalgas Faces se mostrarem –
E a Neblina – fundir-se –
Eis – entre as lápides de Barro –
O Átomo que eu quis!

Fonte: Dickinson, E. 2006. Alguns poemas. SP, Iluminuras. Poema publicado em livro em 1924.

22 maio 2015

Mulher negra


Marie-Guillemine Benoist (1768-1826). Portrait d’une negresse. 1800.

Fonte da foto: Wikipedia.

20 maio 2015

Que luzes são essas?

J. Durral Mulholland

Durante o dia, a rodovia US 90, entre Alpine e a cidade vizinha de Marfa, não é diferente do restante do oeste texano. São 42 quilômetros de vazio, pontilhados de algarobeiras e cactos. À noite existem carros nessa mesma estrada, só que estão estacionados, com os ocupantes olhando para a planície de Mitchell, ao sul. Essas pessoas estão procurando as luzes de Marfa.

Lá, ao longe, um disco de luz movimenta-se pelo campo. De repente, dá uns pulos, depois parece pairar por um momento, ou sai em zigue-zague por ali. Pode se dividir em dois discos, que brincam sem se afastar. Às vezes, são vários ao mesmo tempo. Outras vezes, desaparecem completamente. Para a maioria dos espectadores, as luzes parecem estar bem longe. Outras pessoas relatam terem sido perseguidas por elas. As descrições diferem, mas ninguém discute que as luzes sejam reais. Elas podem ser vistas quase todas as noites.

Ninguém sabe o que há de diferente naqueles poucos quilômetros em volta das fazendas de Nopal, Antelope Springs e Escondido; as luzes não são vistas em nenhum outro lugar. Não há falta de teorias sobre o que sejam. A maioria delas, no entanto, não é científica. Embora poucos ainda acreditem em fantasmas de índios, há muita gente bastante crédula para associar as luzes a forças sobrenaturais ou a visitantes extraterrestres.
[...]

No campo, as luzes continuam a pular, a se dividir e desaparecer. Cada teoria proposta parece ter falhas. Talvez um teste definitivo que analisasse o espectro de cor das luzes fosse capaz de determinar que elementos químicos estão envolvidos. Fazer tais medições, entretanto, exigiria o uso de um grande telescópio que pudesse ser mudado de lugar e de um espectrógrafo adequado. Ninguém ainda se propôs a fornecê-los.

Os habitantes aceitam as luzes como um fato normal. A reação de Laughlin talvez seja típica de como o pessoal do lugar se sente: “Espero que jamais saibamos o que são as luzes de Marfa. Algumas coisas em nossas vidas devem permanecer misteriosas”.

Fonte: Leigh, J. & Savold, D., orgs. 1991 [1988]. O dia em que o raio correu atrás da dona-de-casa... e outros mistérios da ciência. SP, Nobel.

18 maio 2015

Ouvir panelas

Barão de Itararé

Ora! – direis – ouvir panelas! Certo
Ficaste louco... E eu vos direi, no entanto,
Que muitas vezes paro, boquiaberto,
Para escutá-las pálido de espanto.

Direis agora: – Meu louco amigo,
Que poderão dizer umas panelas?
O que é que dizem quando estão contigo
E que sentido têm as frases delas?

E direi mais: – Isso quanto ao sentido,
Só quem tem fome pode ter ouvido
Capaz de ouvir e entender panelas.

Fonte: Amaral, E.; Patrocínio, M. F.; Leite, R. S. & Barbosa, S. A. M. 2013. Novas palavras: 2º ano, 2ª edição. SP, FTD. Poema publicado em 1926. ‘Barão de Itararé’ é pseudônimo de Aparício Torelly.

16 maio 2015

Análise de componentes principais

Bryan J. F. Manly

A técnica de análise de componentes principais foi inicialmente descrita por Karl Pearson (1901). Ele aparentemente acreditou que era a solução correta para alguns dos problemas de interesse para biométricos naquele tempo, apesar de ter proposto um método prático para duas ou três variáveis apenas. Uma descrição de métodos computacionais práticos veio muito mais tarde, [graças a] Hotelling (1933). Mesmo então, os cálculos eram extremamente amedrontadores para mais do que poucas variáveis [pois] tinham [de] ser feitos à mão. Somente após os computadores eletrônicos terem se tornado [ordinariamente] disponíveis é que a técnica de componentes principais alcançou amplo uso.

Análise de componentes principais é um dos métodos multivariados mais simples. O objetivo da análise é tomar p variáveis X1, X2 ..., Xp e encontrar combinações destas para produzir índices Z1, Z2 ..., Zp que sejam não correlacionados na ordem de sua importância e que descrevam a variação nos dados. A falta de correlação significa que os índices estão medindo diferentes ‘dimensões’ dos dados, e a ordem é tal que Var (Z1) ≥ Var (Z2) ≥ ... ≥ Var (Zp), em que Var (Zi) denota a variância de Zi. Os índices Z são então os componentes principais. Ao fazer uma análise de componentes principais, há sempre a esperança de que as variâncias da maioria dos índices serão tão baixas a ponto de serem desprezíveis. Neste caso, a maior parte da variação no conjunto de dados completos pode ser descrita adequadamente pelas poucas variáveis Z com variâncias que não são desprezíveis, e algum grau de economia é então alcançado.
[...]

Fonte: Manly, B. J. F. 2008. Métodos estatísticos multivariados, 3ª edição. Porto Alegre, Bookman.

15 maio 2015

Oito anos e sete meses no ar

F. Ponce de León

Em tempo: na última terça-feira, 12/5, o Poesia contra a guerra completou oito anos e sete meses no ar. Ao longo desse período, e até o fim do expediente de terça-feira, o contador instalado no blogue registrou 269.213 visitas.

Desde o balanço anterior – Oito anos e meio no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Fernando Fortes, John B. Messenger, John L. Jinks, Juan Luis Segundo, Kenneth Mather, Manuel Antônio de Almeida, Moacir Werneck de Castro, Robert Avé-Lallemant, Tatiana Roque e Waly Salomão. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Anna Palm de Rosa, Michael Ancher e Viggo Johansen.

13 maio 2015

Transporte mineiro

Ivan Wrigg

Eu sou passageiro.
Tu és passageiro.
Nós somos passageiros.
A vida é passageira.

Eta, trem bão, sô!

Fonte: Kuri et al. 2004. Adversos. RJ, Atlântica Editora.

11 maio 2015

Interior da cozinha


Viggo Johansen (1851-1935). Køkkeninteriør. 1884.

Fonte da foto: Wikipedia.

09 maio 2015

A missa do Morro dos Prazeres

Waly Salomão

Sursum corda.
Ao alto os corações.
Subir,
com toda alegoria em cima,
subir,
subir a parada
que a lua cheia é a hóstia consagrada na vala negra aberta,
subir,
que o foguetório anuncia a chegada do carregamento,
subir,
querubim errante transformista,
subir,
o incensório da esquadrilha da fumaça-mãe,
subir,
como se inalasse a neve do Monte Fuji,
subir,
o visgo da jaca já gruda na pele,
subir,
salvam pipocos da chefia do movimento,
subir,
soou a hora da elevação,
subir que o morro é batizado
com a graça de Morro dos Prazeres
– topograficamente situado no Rio de Janeiro.
Subir o morro
que a missa católica do asfalto
– sem os paramentos e as jaculatórias do latim da infância –
pouco difere de reunião de condomínio,
sacrifício sem entusiasmós.

Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 1998.

07 maio 2015

Termorregulação

John B. Messenger

Embora todos os animais sejam sensíveis à temperatura, conhecemos muito pouco sobre as células que mediam especificamente a sensação térmica. [...]

As cascavéis e os pitonídeos possuem terminações nervosas altamente sensíveis ao calor radiante. São distribuídas em uma fina membrana situada em duas fossas, uma em cada lado da cabeça, entre o olho e a narina [...]. As terminações freqüentemente se expandem em placas e pode haver mais de 1.000 delas por mm2. O que é notável é que elas são menos susceptíveis à temperatura que a alterações de temperatura, notadamente a aumentos gradativos, da ordem de 0,03 °C. Isso capacita as [serpentes] a detectarem as presas pela radiação infravermelha que emitem: em um experimento, descobriu-se que uma Boa era capaz de detectar um rato vivo a 18 cm mesmo quando este elevava a temperatura em apenas 0,1 ºC. Ademais, as [serpentes] conseguem isso com olhos vendados e as narinas obstruídas; mas não se as fossas estiverem cobertas. Recentemente, demonstrou-se que os neurônios sensíveis ao infravermelho têm projeções no teto óptico [...], em um conjunto topologicamente ordenado que é especialmente semelhante às projeções visuais.

Fonte: Messenger, J. B. 1980. Nervos, cérebro e comportamento. São Paulo: EPU & Edusp.

05 maio 2015

No rio Amazonas

Robert Avé-Lallemant

1.
Precisei apenas de poucas horas em Pernambuco para coordenar alguns assuntos relacionados com o prosseguimento de minha viagem, na esperança de que, no fim desta, me demoraria ainda muitos dias lá.

O ‘Oiapoque’, em que voltara de Manaus para Pernambuco, devia partir no dia 31 de maio, às 5 horas da tarde, rumo ao Pará, na sua viagem com escala pelos portos do norte, e preparei-me para embarcar novamente nele.

Isso, porém, não se realizou sem alguma dificuldade. A maré viva dum mês de inverno e o forte vento de leste impeliam com extraordinária violência os vagalhões contra os arrecifes do porto. A espuma branca elevava-se acima do dique rochoso, à altura duma casa, e as ondas mais altas passavam-lhe livremente por cima do que resultaram diversos choques dentro do porto. O ‘Oiapoque’ também sofreu com isso. Uma Alvarenga carregada de carvão afundara, por ter ancorado muito perto do farol. Caso muito mais triste foi o do capitão dum navio fundeado fora do porto, no mar, no chamado Lameirão, que, querendo voltar para bordo, virou seu escaler, ao transpor a barra, e pereceu afogado com dois marinheiros e um passageiro.
[...]

Fonte: Avé-Lallemant, R. 1980 [1859]. No rio Amazonas. BH, Itatiaia & Edusp.

03 maio 2015

Palavras que rebentam, aflorando

Nuno Guimarães

Palavras que rebentam, aflorando
a pedra, a solidão, deslizam, vagas,
gramaticais, roendo inconformadas
as arestas, o atrito, puras. quando

nos líquidos, no éter, na distância,
diluem-se e morrem acabadas.
não nos corpos, nas rugas, nas arcadas:
combatem, rumorosas, cal e cântico.

é difícil atarem corpo e vida
aos que vivem e morrem subjacentes
subjazendo, talhados para mina.

mas despertadas, bem ou mal medidas,
rebentam em ogiva, funcionais
chamas supostamente adormecidas.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1970.

01 maio 2015

Estreito de Kalmar


Anna Palm de Rosa (1859-1924). Kalmarsund. 1891.

Fonte da foto: Wikipedia:

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