09 janeiro 2015

Ode à ousadia

Fernando Mitre

– Vamos terminar logo essa matéria?

– Estou tentando, mas acho que esse texto podia ficar melhor.

– E por que não fica?

– Porque é matéria de jornal.

– Quê?

– É isso. Se, em vez de fazer lead, eu abrisse com um diálogo.

– E por que não abre?

– Uai, pode?

– Não tem nenhuma lei proibindo.

Era a primeira vez que ouvia aquilo. E ouvia do meu chefe, um tremendo texto, Wander Piroli. Então eu não precisava abrir a matéria com a famosa camisa-de-força? Podia esquecer a lei do lead e deixar o texto correr livremente?

Pois é. Veja só como uma conversinha rápida e corriqueira como aquela na redação do Binômio em 1964 – que tentei reconstituir aqui, puxando as palavras do fundo da memória, tantos anos depois – podia abrir a mente de um pouco-mais-do-que-foca, como eu era naquele tempo.

E, a partir daquela conversa e daquela matéria (se não me engano, era sobre a Companhia Telefônica), eu comecei a quebrar regras. Mais tarde, isso foi essencial na minha vida profissional porque fui cair, já em 1966, numa redação onde o que valia mesmo era exatamente quebrar regras: o Jornal da Tarde, um radical laboratório de experiências editorias e gráficas.

Na área gráfica – que adotei, em certa fase, como minha atividade preferencial – o Binômio já havia semeado pesadas ousadias, principalmente no corte e edição de fotos. Ainda me lembro, claramente, da cena: Oséas de Carvalho discutindo e diagramando a primeira página, selecionando e cortando fotos, medindo e rejeitando títulos e, principalmente, ousando. Este processo de criação oferecia, às vezes, resultados surpreendentes, como uma capa inteiramente sem títulos e jogando apenas com fotos e legendas. As fotos, naturalmente, cortadas de maneira radical.

(Lembro-me agora de que, muitos anos depois de deixar o Binômio, criei uma seqüência de capas no Jornal da Tarde, que foi festejada em todo o país e acabou conquistando prêmios importantes: a primeira delas era uma capa dupla tomando a primeira e a última página do caderno, ocupadas inteiramente por uma única foto; e a segunda, no dia seguinte, era apenas uma mancha negra ocupando todo o espaço da capa. A grande foto mostrava o famoso comício pelas diretas em São Paulo e a mancha negra era a marca do protesto pela derrota da emenda no Congresso. Quero dizer que não tenho dúvidas de que eu já havia encontrado a raiz dessas ousadias no modo de editar do Binômio.)

Mas todos esses lances são, na verdade, sintomas do que se considerava a principal característica do Binômio: a coragem no conteúdo. Foi por aí que se traçou sua trajetória verdadeiramente histórica. Uma espécie de luta quixotesca pela transformação do Brasil. Você teria enormes dificuldades em encontrar, pesquisando os jornais daquele tempo, textos melhores e mais adequados sobre, por exemplo, a necessidade de reforma agrária no Brasil.

Comprova-se, com tudo isso, a marca fortemente precursora do Binômio. De certo modo, era um desbravador.

Nas minhas retinas – ainda não fatigadas... – guardo uma cena em que José Maria Rabêlo, nosso diretor e autor de textos brilhantes, enfrentava no braço um grupo de anticomunistas empenhados em impedir, como de fato acabaram impedindo, um comício de Leonel Brizola em Belo Horizonte. Como se vê, a luta do Binômio nem sempre se limitava às palavras.

E é claro: se forma é tudo o que molda o conteúdo, como dizem teóricos da linguagem, seria impossível imaginar o nosso revolucionário Binômio sem as experimentações, a ousadia e coragem também nas suas estruturas formais.

Fonte: Rabêlo, J. M. 1997. Binômio: edição histórica. BH, Armazém de Idéias & Barlavento Grupo Editorial.

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