30 dezembro 2014

O começo da prática

Alain Manier & Françoise Dolto

[AM] Então, como você diz, foi a guerra que lhe deu a oportunidade de se estabelecer como psicanalista?

[FD] De fato, foi a guerra. No dia da declaração de guerra, 3 de setembro de 1939, além da minha prática liberal eu tinha funções de interna em rodízio de substituição, isto é, eu substituía os médicos dos Enfants-Malades que precisavam se ausentar. A maior parte dos serviços que eu tinha freqüentado [estava] nos Enfants-Malades, que era o único hospital para crianças; logo, eu estava o tempo todo nos Enfants Malades, onde sempre almoçava, e toda a enfermagem me conhecia. E para complementar meus ganhos, fazia substituições na enfermagem noturna. Como todos os chefes de serviços e as enfermeiras me conheciam, aceitavam-me como se fosse uma interna, porque eu tinha feito meu internato com eles. Como lhe disse, não me apresentei no concurso porque não queria tomar o lugar de alguém, eu que não desejava fazer parte daquela hierarquia, da qual fugia, e que achava enlouquecedora para todo mundo. Não se era mais médico, era-se uma peça na hierarquia. Eu julgava isso completamente idiota. Estava, realmente, acabado para mim.
[...]

Fonte: Dolto, F. 1988. Auto-retrato de uma psicanalista. RJ, Jorge Zahar.

28 dezembro 2014

A família de um homem

Glenn D. Everett

Recentemente, nas vésperas de seu nonagésimo quinto aniversário, John Eli Miller morreu numa grande fazenda perto de Middlefield, Ohio, a 40 milhas ao sudeste de Cleveland, deixando para chorar sua morte talvez o maior número de descendentes vivos que qualquer norte-americano jamais teve.

Deixou cinco de seus setes filhos, 61 netos, 338 bisnetos e seis tataranetos, no grande total de 410 descendentes.

Pouco antes de sua morte, que ocorreu repentinamente em consequência de um ataque de apoplexia, tive o privilégio de fazer duas longas visitas a John E. Miller, durante as quais fiquei conhecendo as sensações de um homem que vira, pessoalmente, a expansão da população do século 20. Uma revista nacional declarou que o venerável fazendeiro de Ohio era, quase certamente, o chefe da maior família dos Estados Unidos da América.

Em 1958 um jornal sueco fez um concurso para descobrir a maior família daquele país. Quando uma família – Hellander – apareceu com 265 membros, chefiados por uma bisavó de 92 anos, ganhou o campeonato sueco e mundial.

Logo chegaram aos redatores inúmeras notícias de famílias ainda maiores, como a de um idoso mórmon de Utah que declarava ter 334 descendentes vivos. Eu tinha, no entanto, certeza de que entre a velha Ordem dos Menonitas Amish, seita em que as famílias de mais de cem membros são comuns, talvez se encontrasse uma família maior. [...]

Fonte: Hardin, G., org. 1967. População, evolução & controle da natalidade. SP, Companhia Editora Nacional & Edusp. Artigo originalmente publicado em 1961.

26 dezembro 2014

A se stesso

Giacomo Leopardi

Or poserai per sempre,
Stanco mio cor. Perì l’inganno estremo,
Ch’eterno io mi credei. Perì. Ben sento,
In noi di cari inganni,
Non che la speme, il desiderio è spento.
Posa per sempre. Assai
Palpitasti. Non val cosa nessuna
I moti tuoi, nè di sospiri è degna
La terra. Amaro e noia
La vita, altro mai nulla; e fango è il mondo.
T’acqueta omai. Dispera
L’ultima volta. Al gener nostro il fato
Non donò che il morire. Omai disprezza
Te, la natura, il brutto
Poter che, ascoso, a comun danno impera,
E l’infinita vanità del tutto.

Fonte (cinco últimos versos): Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 3. Brasília, Senado Federal. Poema publicado em livro em 1835.

24 dezembro 2014

A última ceia


Mestre [Manuel da Costa] Ataíde. A última ceia. 1828.

Fonte da foto: Wikipedia.

22 dezembro 2014

Maranhão e Mariana são dois mares

Francisco Xavier da Silva

Maranhão e Mariana são dois mares
Que por mar cada um deles principia:
Mariana mar de gosto, de alegria;
Maranhão mar de dores, de pesares.

De uma e outra paixão, como exemplares,
Cada qual no seu nome traz a guia;
Ele a Mara passando, ela a Maria,
No amargor, na doçura singulares.

A inteireza do I figura é clara
De insigne Bago do Pastor de Jetro,
Quando assiste em Mariana e deixa a Mara.

E sem Bago, ou com ele, soa o metro,
No Maranhão de pena Lira amara,
Em Mariana de glória doce plectro.

Fonte: Martins, W. 1977. História da inteligência brasileira, vol. 1. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1749.

19 dezembro 2014

Ladainha dos póstumos natais

David Mourão Ferreira

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1971.

17 dezembro 2014

Plantas, pântanos e o mundo frigorífico

Charles Cockell

Condições glaciais intensas simbolizaram o Carbonífero Superior e o Permiano Inferior, mas por que essas condições ocorreram e persistiram? O papel das plantas parece ter sido fundamental. O momento de maior extensão dos pântanos formadores de carvão do Carbonífero coincidiu com menores níveis estimados de CO2 e máxima glaciação. O impacto das plantas terrestres, no entanto, estava inextricavelmente ligado a outros fatores. Por exemplo, a redução relativa dos sistemas de dorsais meso-oceânicas poderia ter resultado em uma queda do nível do mar, formando planícies extensas para os pântanos formadores de carvão. Além disso, a diminuição da atividade vulcânica poderia ter poderia ter produzido menos CO2 para neutralizar os efeitos do seqüestro biótico, e o acúmulo de gelo polar, em si, poderia ter assegurado uma redução do nível global do mar, resultando em ainda mais exposição de áreas da plataforma continental. Além disso, o movimento de parte da massa continental sobre o Pólo Sul pode também ter contribuído para o resfriamento observado. Finalmente, a formação do próprio Pangea como resultado de grandes processos de colisão, que causaram o soerguimento continental, teria posteriormente aumentado as taxas de intemperismo. A abundância de sedimentos desprendidos dessas montanhas também teria contribuído para a preservação do carvão por meio do soterramento contínuo de turfeiras pantanosas por vastos sistemas de delta. Juntos, esses fatores estabeleceram uma retirada líquida sustentável de CO2 da atmosfera, reduzindo assim a temperatura e mantendo as condições de frigorífico.
[...]

Fonte: Cockell, C. 2011 [2008]. A Terra em condições extremas. In: Cockell, C., org. Sistema Terra-vida: Uma introdução. SP. Oficina de Textos.

15 dezembro 2014

O papel do trabalho

Friedrich Engels

Toda riqueza provém do trabalho, asseguram os economistas. E assim o é na realidade: a natureza proporciona os materiais que o trabalho transforma em riqueza. Mas o trabalho é muito mais do que isso: é o fundamento da vida humana. Podemos até afirmar que, sob determinado aspecto, o trabalho criou o próprio homem.

Há milhares de anos atrás [sic], em época ainda imprecisa da formação da Terra, provavelmente no final do período que os geólogos qualificam de Terciário, vivia, em um lugar não identificado da zona tropical – talvez num extenso continente hoje submerso nas águas profundas do Oceano Índico –, uma raça de macacos antropomorfos, já em estado de desenvolvimento muito elevado. Darwin nos deixou uma descrição bastante pormenorizada destes nossos antepassados: eram animais inteiramente cobertos de pêlo, com barba, orelhas pontiagudas e que viviam nas árvores, sempre em manadas.
[...]

Fonte: Engels, F. 1984 [1878]. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: Universidade Popular, no. 4, 2ª edição. SP, Global.

13 dezembro 2014

Sábado na hora da escuta

Mário Chamie

por fora
nesta hora
estou estamos na poltrona.
o sábado:
seu macio beladona
nos prende na onda
no baixo letal veneno da sombra
cômoda.

na poltrona do sossego
estou estamos no centro
das ondas longas
das ondas curtas
da língua suja
da mesma fria
NOTÍCIA
com sua asma
com seu fantasma
de sentença coletiva.

estou estamos na ilha
sob os raios de radium
onde estando estamos
com o rádio de pilha.

seu reino avança
indefesos
presos
estou estamos no centro.
dentro
a enguia fria da NOTÍCIA
lança a mão em onda de onde
está estando em sombra.

pois esta é a sombra.
esta, a cômoda.
este, o letal concêntrico
veneno
em volta da poltrona.

estou estamos
no centro por dentro da ilha
sob as águas, no meio das ondas
o rádio de pilha
está onde estamos
– sombra e escudo –
quando mudos
na sombra
ouvimos o que não muda
e manda.

Fonte: Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1978.

12 dezembro 2014

Oito anos e dois meses no ar

F. Ponce de León

Nesta sexta-feira, 12/12, o Poesia contra a guerra completa oito anos e dois meses no ar. Ao longo desse período, e até o fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue registrou 261.551 visitas.

Desde o balanço anterior – Noventa e sete meses no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Alfred Norton Whitehead, Elvi Sinervo, Eric Berne, Louis Not e M. J. C. Surrey. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Hyacinthe Rigaud, Pierre Peyron e Thomas Couture.

10 dezembro 2014

Em trajes reais


Hyacinthe Rigaud (1659-1743). Louis XIV en grand costume royal. 1701.

Fonte da foto: Wikipedia.

08 dezembro 2014

Jogos: definição

Eric Berne

Um jogo é uma série de transações complementares que se desenrolam até um desfecho definido e previsível. Pode ser descrito como um conjunto repetido de transações, não raro enfadonhas, embora plausíveis e com uma motivação oculta. Para definir de maneira mais simples, jogos são constituídos por uma série de lances com uma cilada ou ‘truque’ no meio ou no fim. Os jogos são claramente diferenciados dos procedimentos, rituais e passatempos por duas características principais: (1) sua natureza inconfessada e (2) um desfecho. Os procedimentos podem ser bem sucedidos, os rituais podem ser eficientes e os passatempos proveitosos, mas por definição todos são sinceros; eles podem envolver uma disputa, mas não um conflito, e o seu desfecho pode ser sensacional, mas não é dramático. Por outro lado, todo jogo é basicamente desonesto, e seu desfecho tem um certo caráter de dramaticidade.

Resta distinguir os jogos de um tipo de ação social – a operação – que ainda não foi discutido. Uma operação é uma transação simples ou um conjunto de transações empreendidas com um propósito simples e direto, especificamente declarado. Se alguém pede francamente um pouco de tranqüilidade e a recebe, isto é uma operação. Mas se quem fizer esse pedido depois transformar tudo de tal sorte que quem lhe proporcionou essa tranqüilidade acabe em desvantagem, temos um jogo. Aparentemente, portanto, um jogo parece ser um conjunto de operações, mas depois do desfecho torna-se evidente que aquelas ‘operações’ na verdade eram lances de um jogo, eram mais propriamente manobras e não pedidos sinceramente enunciados.
[...]

Fonte: Berne, E. 1977 [1964]. Os jogos da vida. RJ, Artenova.

06 dezembro 2014

A um poeta

Olavo Bilac

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplicio
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.

Fonte: Bilac, O. 1985. Poesias. BH, Itatiaia. Poema publicado em livro em 1888.

04 dezembro 2014

É difícil...

Elvi Sinervo

É difícil,
na selva
não morder
quando na mandíbula
estão os dentes do predador.

É difícil,
na selva,
com o sangue fervente,
com a mão que se levanta como garra
por um sopro devastador,
lembrar-se:
uma pessoa civilizada não agride a outra.

É difícil,
na selva,
quando outro rouba
o que a gente pensa ser nosso,
lembrar-se:
aqui nada é meu.

É difícil,
na selva,
ser uma pessoa civilizada.

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM.

02 dezembro 2014

Uma modesta proposta

Jonathan Swift

É melancólico para os que andam por esta grande cidade, ou viajam por este país, ver as ruas, as estradas e as plataformas das estações repletas de mendigas, seguidas por três, quatro ou seis filhos, todos andrajosos, e importunando cada passante por uma esmola. Essas mães, por não serem capazes de trabalhar por um honesto meio de vida, são forçadas a empregar todo seu tempo em vaguear implorando a subsistência para seus infelizes filhos, e estes, quando crescem, roubam por falta de trabalho ou deixam seu país de origem para lutar na Espanha, ou vendem-se aos barbadianos.

Creio que todos concordam que esse prodigioso número de crianças, nos braços, nas costas, ou nos calcanhares de suas mães e, freqüentemente, de seus pais, é no atual estado deplorável do reino, uma agravante adicional muito grande; e, portanto, quem quer que possa encontrar um método justo, barato e fácil de tornar essas crianças membros saudáveis e úteis da comunidade, faria um bem tão grande que mereceria ter sua estátua erigida como um herói nacional.

Mas minha intenção está muito longe de limitar-se apenas ao sustento dos filhos de mendigos profissionais, ela é muito mais ampla e procurará abranger todas as crianças de uma certa idade, cujos pais, na realidade, são tão incapazes de sustentá-las, como aqueles que imploram a nossa caridade pelas ruas.
[...]

Fonte: Wallace, B. 1978 [1972] Biologia social, vol. 1. RJ, LTC & Edusp.

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