16 novembro 2014

Termos de comparação

Zulmira Ribeiro Tavares

São lidos por especialistas
um pequeno círculo
ávido.

A avestruz é um bicho-raro.
O poeta uma ávis-trote.

A avestruz engole
tudo: parafusos em princípio.
O poeta não
digere uma
única partícula.
Tudo: fica-lhe atravessado.
no papel, para tanto
estraçalha e regurgita –

ei-la: a Arte!!

Com quantas letras escreve-se “destroço”?
e “pútrido”?
com quantas, “estrutura”?

Para escrevê-las
com quantos dentes mastiga-se?
para romper certas palavras
o que se morde? o que sangra de início,
a língua?
Mas quem morde a língua
é o arrependido,
o que se cala.

Por isso a avestruz
é o bicho cândido.
O poeta, o tão difícil.

Todo o mundo sabe que ela é simples.
Cada enciclopédia a determina.

Ninguém confunde
a localização das plumas
o bico contra o peito: direção na fuga

o parafuso dentro
do estômago.

Vamos devagar com os poetas.
Por que são aves?
Porque regulam o peso de seus braços
e conforme cismam – voam.

Ávis-trotes porque pulam
inesperadamente
e quebram os braços.

Lidos por um grupo ávido.
Por que ávido?
por que de especialistas?

por que lidos?

Porque: –
não engolem
nem recusam

porque atrapalha
o comum espetáculo circense
do parafuso descendo pelo esôfago
o seu engasgo, o seu espasmo.

Porque são
intrusos.
Não se aceitam ávis-trotes
nos circos – Não comem espadas
muito menos fogo.

Porque não se juntam
ao comum dos espectadores
na arquibancada
mansamente digerindo sobras.

Porque não têm país certo
assinalado no mapa
como sói acontecer às avestruzes.

Seu país é:
Nenhures.

Terra de difícil acesso
sujeita tanto
aos roedores
quanto à ação
das irradiações atrozes.

Em Nenhures
os acontecimentos desencadeiam-se fatais
ou, ao contrário, lúdicos.

Por exemplo em Nenhures
as unhas crescem
sozinhas do solo
simples para
beliscarem certas
zonas glúteas

É o cúmulo! – dizem todos –
É impensável!
Num país sujeito a irradiações
e à fatalidade
as unhas crescerem
e para isso!

Por isso os especialistas se interessam
Por isso sabem
São especialistas, por isso
poucos.

A ávis-trote
– nome científico, o vulgo a conhece por poeta –
também
é estudada nas escolas
fora do círculo.

Mais escassas fazem-se as respostas
a curiosidade nas crianças amaina-se
acalma-se, o poema: ovo choco muita vez
pois o poeta é fase histórica
não escapa –

raramente põe-se
como objeto de estudos.
De seu autor, pouco provável que se tenha
uma noção menos confusa.

O povo aclama a avestruz!
as plumas! ah!
a esplêndida
aventura audaz do parafuso!

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano. Poema publicado em livro em 1974.

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