13 agosto 2014

Um dia

António Osório

Um dia pensará alguém, lendo estes versos,
por que razão ocultou
(de propósito) tanta piedade
e sofreu de mão aberta
por rapaces, ébrios
e um lobinho que sua mãe enterrou
escavando com focinho cruel o túmulo,
procurava escrever direito
por linhas tortas
e amava a tal ponto a vida
que dela ficou aquém, com suas garatujas;
porque quis ser folhas de azinheira
para uma cabra montês, pagando o mal
dos outros e o seu
e tímida inveja tinha das aves
(só delas) e dessas delicadas
entabulações amorosas,
que o assombravam tanto quanto a perfídia,
um pedinte, a luxúria
ou a consoladora luz matutina;
porque quis, não ao dilúvio,
mas à arrependida recessão das águas,
penou com as reses
a caminho do seu fim, como uvas
de camião no outono,
e todas as estações o angustiavam
(não só a primavera), devido à perfeita,
à meticulosa organização do nada;
e porque amou tão pouco, ele desejoso
de voltar ao fundo de sua mãe,
não por afã da morte ou mórbido enfado,
mas para recomeçar como criança.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1978.

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