29 junho 2014

A inteligência dos elefantes

Bernhard Rensch

Quanto maior o cérebro, maior a capacidade cerebral – isso parece ser uma regra geral entre os membros comparáveis do reino animal. Diante dessa interessante relação, é estranho que os cientistas tenham prestado tão pouca atenção ao cérebro do elefante. Ele não é apenas o maior animal terrestre, mas possui também a maior massa cerebral (cerca de 6 kg). Os zeladores de zoológicos, os treinadores de circo e os habitantes da selva que usam os elefantes como animais de trabalho sabem há muito que o elefante é uma criatura inteligente. Mas quão inteligente, exatamente? Recentemente, estivemos examinando sua capacidade mental, de forma sistemática, em nosso Instituto Zoológico, em Münster, Westphalia.
[...]

Esses experimentos e os nossos primeiros estudos com outros animais permitem-nos levantar algumas hipóteses gerais sobre o tamanho do cérebro. Tamanho é evidentemente um fator decisivo na capacidade de aprendizagem do cérebro. É claro que isso se aplica não só ao tamanho do cérebro anterior como um todo, mas também ao tamanho relativo das várias regiões cerebrais, especialmente as das sete camadas do córtex cerebral. A densidade das células cerebrais (número por unidade de volume) parece também ser um fator decisivo. Outro fato significativo é que os animais maiores têm células ganglionares (matéria cinzenta) maiores que as de seus parentes de menor tamanho. Essas células maiores têm mais fibras ramificadas e assim, provavelmente, permitem associações mais complicadas para aprendizagem. Além disso, as fibras nervosas de células grandes são maiores em diâmetro e parece razoável supor que isso possa ser responsável pela boa retenção e memória longa: quanto maiores as fibras, mais estáveis e duradouras as conexões que podem estabelecer-se entre as células.

Quanto de verdade existe nessas hipóteses terá que ser determinado por experimentos posteriores.

Fonte: Rensch, B. 1977 [1970]. A inteligência dos elefantes. In: Scientific American, Psicobiologia: as bases biológicas do comportamento. RJ, LTC. Artigo originalmente publicado em 1957.

27 junho 2014

Olhos de ressaca

Geraldo Carneiro

minha deusa negra quando anoitece
desce as escadas do apartamento
e procura a estátua no centro da praça
onde faz o ponto provisoriamente

eu fico na cama pensando na vida
e quando me canso abro a janela
enxergando o porto e suas luzes foscas
o meu coração se queixa amargamente
penso na morena do andar de baixo
e no meu destino cego, sufocado
nesse edifício sórdido & sombrio
sempre mal e mal vivendo de favores

e a minha deusa corre os esgotos
essa rede obscura sob as cidades
desde que a noite é noite e o mundo é mundo
senhora das águas dos encanamentos

eu escuto o samba mais dolente & negro
e a luz difusa que vem do inferninho
no primeiro andar do prédio condenado
brilha nos meus tristes olhos de ressaca

e a minha deusa, a pantera do catre
consagrada à fome e à fertilidade
bebe o suor de um marinheiro turco
e às vezes os olhos onde a lua

eu recordo os laços na beira da cama
percorrendo o álbum de fotografias
e não me contendo enquanto me visto
chego à janela e grito pra estátua

se não fosse o espelho que me denuncia
e a obrigação de guerras e batalhas
eu me arvoraria a herói como você, meu caro
pra fazer barulho e preservar os cabarés.

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.

25 junho 2014

Queimadas e constelações

Berta G. Ribeiro

Aqui cabe abrir um parêntese. No modo de entender dos Desâna, as épocas de derrubada, queima e plantio das roças, no rio Tiquié, são calculadas pelo aparecimento de constelações e das chuvas concomitantes, entre as quais medeiam curtas estiagens. Com efeito, as observações atmosférico-celestiais dos Desâna informam o aparecimento, ao longo do ano, de dezenove constelações. Os nomes que os índios lhes atribuem são os mesmos das chuvas que elas prenunciam. A estas precipitações correspondem fenômenos naturais, tais como: a piracema (subida de algumas espécies de peixe em desova); subida de cardumes de peixes não em desova; maturação de saúvas, térmites, gafanhotos e larvas de borboletas, de que os índios se alimentam em determinadas épocas do ano; maior concentração de rãs (localizadas pelo seu canto) e de cogumelos, também comestíveis [...].

Essas chuvas são entremeadas por verões, que duram de oito a quinze dias, e veranicos, que não excedem cinco dias sem precipitação alguma. Durante os ‘verões’, procede-se à queima de roças abertas em mata virgem e, durante os veranicos, em terreno de capoeira. São identificados, de um modo geral, segundo uma denominação idêntica à das fruteiras, cujo término de safra dos respectivos frutos coincide com essas curtas estiagens.
[...]

Fonte: Ribeiro, B. G. 1995. Os índios das águas pretas. SP, Companhia das Letras & Edusp.

23 junho 2014

Poema

Nuno Júdice

Os poetas a quem a morte surpreende,
quando jovens, juntam-se algures noutra superfície.
De noite, os seus uivos atingem o celeste rebordo
da esfera; um ouvido mais atento distinguirá,
de entre os mil ruídos da temível noite,
o seu coro de imprecação e choro.
De dia, adormecidos sob a terra, dissolvem-se
na humildade e nas raízes. Só os seus olhos,
na feroz abertura das pálpebras, ainda brilham
e mexem. No entanto, se alguma imagem da passada
vida os atormenta e obceca, tornam-se baixos
e baços. Uma escura lágrima cai em terra,
e o lodo assim formado me serve de alimento.
Os meus lábios e a minha língua adquirem
a sua consistência, e o meu corpo lamacento
volta-se para baixo, de onde surge um barulho
de mãos e de pés,
um barulho de vento nos órgãos vazios.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1975.

21 junho 2014

Noites de inverno

Eugène Marais

Oh! frio é o vento,
desolado.
Vastos como a misericórdia divina,
jazem os campos sob a luz das estrelas,
na sombra.
E alto, nos confins dispersos,
nos terrenos queimados,
as sementes se movem
como mãos acenando.

Oh! triste é a melodia
quando fustiga o vento do este,
como a jovem que perdeu seu amado.
Na dobra de cada folha de grama
brilha uma gota de orvalho
e rapidamente empalidece,
até transformar-se em grama, na friagem.

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM. Poema originalmente publicado em 1905.

19 junho 2014

Passeio matutino


Anthonij [Anton] Mauve (1838-1888). Morgenrit langs het strand. 1876.

Fonte da foto: Wikipedia.

17 junho 2014

A invenção das letras

Jô Amado

O Diário, de Vitória, era, como se dizia na época, um jornal ‘a quente’. A composição era feita por linotipos, à base de chumbo. E os patrões não tinham muito interesse em renovar os tipos porque, àquela época, praticamente já só se trabalhava com a impressão em offset. A escassez de tipos transformava o fechamento de cada edição em uma experiência absolutamente surrealista.

Em geral, éramos o Luzimar e eu que fechávamos a edição. A redação ficava no andar de cima – uma espécie de mezanino – e a oficina, no de baixo. As laudas das matérias eram enviadas por uma engrenagem que funcionava como um mini-elevador. Mandávamos, normalmente, as matérias correspondentes a uma página. Descidas as matérias, passavam-se uns minutos e o Nilson, ou o Alemão, berravam lá de baixo:

Olha, corpo 48, só tem dois ‘a’ em caixa baixa e dois em caixa alta para a capa! Corpo 36, só três ‘e’ em caixa baixa!

E nós tínhamos que inventar títulos com os tipos disponíveis.

Fonte: Amado, J. & Moreira, R. 2004. Palavras. SP, Edição dos Autores.

15 junho 2014

Manhãs de além-túnel

Carlos Saldanha Legendre

1.
um túnel um túnel um túnel sem fim
ao fim do túnel sem fim um tonel
um tonel de mel de Além-Túnel
um tonel de toneladas de mel
do mel de um dia melado de luz sem
fim
que compus para ti
para mim

2.
te possuí aqui acolá
em tantos sítios
cantados semprencantados

– mas nunca

te possuí ao fim de um túnel
nunca te possuí ao fim
nunca te possuí
nunca

mas quando te desejei
vãs manhãs, já não sei.

Fonte: Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1971.

13 junho 2014

A norma adaptativa

Bryan Shorrocks

Quando examinamos o processo adaptativo, torna-se claro que existem dois tipos bem diferentes se seleção natural atuando: um tipo elimina a variação genética das populações e o outro tende a promover a variação genética.

Darwin compreendia a seleção como um processo purificador, como a sobrevivência do tipo melhor adaptado. [...]

A importância dada pelos biólogos a estas formas de seleção levou a dois pontos de vista radicalmente diferentes sobre a diversidade genética em populações naturais. Estas idéias sobre estrutura de população e natureza da norma adaptativa foram chamas de hipóteses ‘clássica’ e de ‘balanceamento’ [...].

A teoria clássica

Esta teoria pressupõe que os alelos podem ser convenientemente divididos no tipo selvagem ‘normal’, que é o comum, e no mutante raro. Os indivíduos são homozigotos para o gene selvagem em praticamente todos os locos; os alelos mutantes estão presentes somente em pouquíssimos locos, onde produzem a condição de heterozigose. A maioria destes alelos mutantes, ou variedades, é deletéria e a seleção direcional estará constantemente removendo-os de um modo purificador. [...]

A teoria de balanceamento

Na sua forma mais extrema [...], a teoria do balanceamento postula que a maioria dos indivíduos de populações que se [entrecruzam] sexuadamente será heterozigota em quase todos os seus locos. A única exceção serão os filhos de pais estreitamente aparentados (endocruzamento). Segue-se desse postulado que o número de alelos alternativos em cada loco deve ser grande, caso contrário a segregação [mendeliana] produziria um alto grau de homozigose. [...]

Fonte: Shorrocks, B. 1980. A origem da diversidade. SP, TA Queiroz & Edusp.

12 junho 2014

Noventa e dois meses no ar

F. Ponce de León

Nesta quinta-feira, 12/6, o Poesia contra a guerra completou noventa e dois meses no ar. Ao longo desse período, o contador instalado no blogue registrou 246.086 visitas.

Desde o balanço anterior – Noventa e um meses no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Adrian Desmond, António Ferreira, August Liesch, Carole Matthews, Cathy Kilpatrick, Fernando Ferreira de Loanda, Frederick W. Turner, Hugo Assmann, James Moore, Oswaldo Serpa e Rubem Alves. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Évariste-Vital Luminais, Georges Michel e Léon Cogniet.

11 junho 2014

O senso comum e a ciência

Rubem Alves

O que é que as pessoas comuns pensam quando as palavras ciência ou cientista são mencionadas? Faça você mesmo um exercício. Feche os olhos e veja que imagens vêm à sua mente.

As imagens mais comuns são as seguintes:
+ o gênio louco, que inventa coisas fantásticas;
+ o tipo excêntrico, ex-cêntrico, fora do centro, manso, distraído;
+ o indivíduo que pensa o tempo todo sobre fórmulas incompreensíveis ao comum dos mortais;
+ alguém que fala com autoridade, que sabe sobre o que está falando, a quem os outros devem ouvir e... obedecer.

Veja as imagens da ciência e do cientista que aparecem na televisão. Os agentes de propaganda não são bobos. Se eles usam tais imagens é porque eles sabem que elas são eficientes para desencadear decisões e comportamentos. É o que foi dito antes: cientista tem autoridade, sabe sobre o que está falando e os outros devem ouvi-lo e obedecê-lo. Daí que imagem de ciência e cientista pode e é usada para vender cigarro. Veja, por exemplo, os novos tipos de cigarros produzidos cientificamente. E os laboratórios, microscópios e cientistas de aventais brancos enchem os olhos e a cabeça dos telespectadores. E há cientistas que anunciam pasta de dente, remédios para caspa, varizes e assim por diante.
[...]

Fonte: Alves, R. 1981. Filosofia da ciência. SP, Brasiliense.

09 junho 2014

Floresça, fale, cante, ouça-se, e viva

António Ferreira

Floresça, fale, cante, ouça-se, e viva
A Portuguesa língua, e já onde for
Senhora vá de si soberba, e altiva.

Se até aqui esteve baixa, e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram:
Esquecimento nosso, e desamor.

Mas tu farás, que os que a mal julgaram
E ainda as estranhas línguas mais desejam,
Confessem cedo ante ela quanto erraram,

E os que depois de nós vierem, vejam
Quanto se trabalhou por seu proveito,
Porque eles para os outros assim sejam.

Se me enganei, se tive mau respeito
Andrade, tu o julga: mas espero
De te ser este meu desejo aceito.

E enquanto mais não peço, isto só quero.

Fonte (dois primeiros tercetos): Martins, W. 1977. História da inteligência brasileira, vol. 1. SP, Cultrix & Edusp. O trecho acima integra uma obra mais extensa – publicada em livro em 1598 –, correspondendo ao final da ‘Carta III: A Pero d’Andrade Caminha’.

07 junho 2014

Moinho de vento


Georges Michel (1763-1843). Moulin à Montmartre. Circa 1820.

Fonte da foto: Wikipedia.

05 junho 2014

Porlamar

Fernando Ferreira de Loanda

Baixo às profundas
abissais da palavra:
colho-a como um ovo
entre as algas, como
uma pêra na geladeira,
como um peixe roubado
à voracidade de outro,
como um pato abatido
no pântano, como areia
fina, na barra, a fugir
entre meus dedos.
Como-a
com uma pitada de sal.
Se de veias, sangro-a;
pétrea, sob o cinzel,
dirá o que direi, nua,
gelada e engalanada,
confiante e confidente.

Busco-a a madrugar,
mastim, de tocaia,
como se colhesse amoras
temendo as silvas.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema publicado em livro em 1991.

04 junho 2014

Rough it

Oswaldo Serpa

173. Observações sobre pronomes pessoais

I – Os pronomes it, we, you e they podem ser usados indefinidamente, com o sujeito indeterminado.
It is say that..., dizem que...
When we are old..., quando se é velho...
You never can tell, nunca se sabe, a gente nunca pode saber.
They say that..., dizem que...

II – O pronome we é usado em substituição a I por escritores, juízes, imperadores, etc.

III – We é também empregado como um pronome genérico, significando – todos nós, a humanidade.
We owe a great deal to our parents, devemos muito a nossos pais.

IV – We, significando you, é algumas vezes empregado por um médico, um parente ou um amigo, dirigindo-se a um doente ou, em tom paternal, a uma criança.
How are we today? Como está você hoje?
Can’t we be quiet for a moment? Você não pode sossegar por um instante?

V – You pode ser usado como expletivo:
You fool! Seu bobo!

VI – Como you não distingue o plural do singular, é comum o acréscimo de um substantivo para indicar o plural:
You fellows, vocês camaradas, you boys, vocês meninos.

VII – He e she podem denotar o sexo, como he-bear, urso, she-goat, cabra, etc.

VIII – Em linguagem coloquial, usam-se os pronomes he e she como pronomes provisórios:
He has no manners, that boy, ele não tem modos, aqueles menino.

IX – Usa-se o pronome it:
a) Como sujeito impessoal: It rains, chove.
b) Como sujeito antecipado: It is easier to pull down than to build, é mais fácil demolir que construir.
c) Como sujeito enfático: It was here that he fell, foi aqui que ele caiu.
d) Como objeto antecipado: He considered it impossible to write the book in two months, ele considerou impossível escrever o livro em dois meses.
e) Em certas expressões idiomáticas, como: Run for it, Charles! Corra, Carlos!
They made it up, eles se reconciliaram.
Rough it, viver sem conforto, viver uma vida rústica.

Fonte: Serpa, O. 1975. Gramática da língua inglesa, 3ª edição. RJ, Fename.

02 junho 2014

Um capelão do demônio?

Adrian Desmond & James Moore

O ano é 1839. A Inglaterra despenca em direção à anarquia, com agitações e tumultos em todo o país. Os jornais sensacionalistas estão em ebulição, bombas incendiárias voam. O clamor nas ruas é pela revolução. Evolucionistas vermelhos – visionários que enxergam a vida marchando inexoravelmente para o alto, [impulsionada] pela base – denunciam os sustentáculos de uma sociedade ultrapassada e estática: os privilégios clericais, a exploração salarial e os asilos de pobres. Um milhão de socialistas fustigam o casamento, o capitalismo e a gorda e corrupta Igreja oficial. Cristãos radicais unem-se a eles – dissidentes carolas, que condenam a igreja ‘fornicadora’ como uma ‘meretriz’, na cama com o Estado.

Mesmo a ciência deve ser expurgada, pois, para os ateus de sarjeta, os átomos materiais são tudo o que existe neste mundo, e, assim como os ‘átomos sociais’ – as pessoas –, são capazes de se auto-organizar. Espíritos e almas são uma ilusão, parte da cruel trapaça das classes altas para subjugar o povo trabalhador. A ciência da vida – a Biologia – jaz arruinada, prostituída, transformada pelo clero em uma cidadela criacionista. A Grã-Bretanha está oscilando à beira do colapso – ou assim parece às classes [altas] que cerram fileira para proteger seus privilégios.

Nesse exato momento, como poderia um ambicioso cavalheiro de trinta anos de idade dar início a um caderno secreto de anotações e, com uma abrangência imprudente, sugerir que moluscos acéfalos e [hermafroditos] são os ancestrais da humanidade? Filho de um grande proprietário de terras, educado em Cambridge e que tinha sido destinado ao sacerdócio. Um homem cuja família inteira detestava os ‘furiosos & licenciosos’ arruaceiros radicais.
[...]

Fonte: Desmond, A. & Moore, J. 2000. Darwin: A vida de um evolucionista atormentado, 3ª edição. SP, Geração Editorial.

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