15 abril 2014

Canto da insubmissão

Bueno de Rivera

Eu, que sou pedra e montanha, sangue e oeste,
negro poço do tempo e da memória,
mãos sujas no labor do subsolo,
apenas vos ofereço o choro vivo
dos homens solitários.

Somos os filhos da noite mineral, os frutos
sem planície e sem sol, ignorados
trabalhadores das minas tenebrosas.
Marinheiros do abismo
sem estrela e âncoras.
Caras de carvão, flores da treva, lírios
de luto brotando num jardim de turfas.

Homens duros e amargos, oriundos
de solidões calcáreas, escondemos
nosso protesto na ironia indócil,
não cortante como lâmina, mas pungente
como anedota de loucos, confissões
de bêbedo, música de cego.

É estranho esse modo de ferir, pedindo
desculpas. Amigos, perdoai-nos,
amigos, crede em nós, os homens tristes!
Sob a face solene
há coração sangrando
por nós, por vós.

Um grito de mãe na tempestade, um morto
não identificado, uma janela
na noite do hospital, um pé descalço,
a tecelã tossindo
sob a rosa de seda, ou uma bandeira
no enterro do operário, todo o drama
nos fere, nos afoga
em fundas cogitações e paralelos.
A angústia do povo acende o lume
de nossos poemas solidários.

No entanto, os amigos aconselham: “Ó ingênuos,
por que esse agitar de braços como flâmulas?
Na tarde do bar, entre os espelhos,
há poetas cantando a vida amena.
Alegrai também o vosso canto, erguei louvores
à farândula dos mitos!”

Impossível, embora
eu saiba que há magnólias sob a lua,
lotações de sereias, luminosas
vivendas na praia, entre piano e beijos,
autos deslizando, peixes lúcidos
no mar do tráfego,
e pernas oleosas, mãos em brinde
no espelho do champanhe, o baile, o sonho.
Impossível, pois sei também que existem
soluços e revoltas,
lírios no charco, luta de afogados
contra as marés, o monopólio e a morte.
E isso me comove. Mais que o fogo
isso me queima e me ilumina. Eu sofro
o mundo desigual, a vida em pânico!

Eu, que sou pedra e montanha, sangue e oeste,
negro poço do tempo e da memória,
só vos posso este sombrio
canto, denso e amargo
oceano de enigmas, doloroso
rio subterrâneo.

Fonte: Rivera, B. 2003. Melhores poemas de Bueno de Rivera. SP, Global. Poema publicado em livro em 1948.

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