08 agosto 2013

O Eu espontâneo


O Eu espontâneo, a Natureza,
O dia amoroso, o sol engastado, o amigo com quem estou feliz,
O braço de meu amigo apoiado, preguiçosamente, sobre o meu ombro,
A encosta embranquecida pelas flores da sorveira brava,
A mesma altura do outono, os matizes de escarlate, amarelo, castanho, púrpura e verde claro e escuro,
A colcha rica da grama, os animais, os pássaros, a margem desaprumada e isolada, as maçãs selvagens, os cristais de rocha,
Os belos fragmentos gotejantes, a lista negligente de um após o outro quando os chamo ou penso sobre eles,
Os poemas reais (o que chamamos poemas sendo apenas imagens),
Os poemas da intimidade da noite, e de homens como eu,
Este poema desfalecendo, tímido e incógnito, que carrego sempre, e que todos os homens carregam,
(Que tu conheças, de uma vez por todas, o propósito declarado: onde quer que haja homens como eu, estão nossos poemas masculinos, vigorosos e secretos.)
Pensamentos de amor, fluídos de amor, cheiro de amor, oferta de amor, trepadeiras de amor, seiva trepadeira,
Braços e mãos de amor, lábios de amor, dedão fálico de amor, seios de amor, barrigas úmidas e pressionadas uma na outra com amor,
Terra de casto amor, vida que é apenas a vida após o amor,
O corpo de meu amor, o corpo da mulher que amo, o corpo do homem, o corpo da terra,
Ares macios da manhã que sopram de sudoeste,
A abelha selvagem, peluda, que zune e expressa os seus anseios subindo e descendo, que aborda a moça flor plenamente e curva-se sobre ela com pernas firmes e amorosas, toma a sua vontade de possuí-la, e se aperta trêmula e com força até estar inteiramente saciada;
A floresta orvalhada através das primeiras horas do dia,
Dois que dormem à noite, deitados próximos um do outro, um com o braço oblíquo atravessado em torno e abaixo da cintura do outro,
O perfume das maçãs, aromas de ramonas esmagadas, menta, casca de vidoeiro,
As saudades do menino, o brilho e a tensão no momento em que ele me confessa o teor de seus sonhos,
A folha seca girando em seu redemoinho e caindo paralisada e satisfeita no chão,
Os espinhos disformes que se avistam, as pessoas, os objetos, com os quais me aguilhoam,
O espinho furador de mim mesmo, aguilhoando-me tanto quanto se pode aguilhoar alguém,
Os irmãos sensíveis, esféricos, subpostos, de quem apenas os tentáculos privilegiados podem ser íntimos no lugar em que estão,
O curioso vagante tem a sua mão vagando pelo corpo inteiro, a tímida retirada da carne onde os dedos verdadeiramente param e cingem a si mesmos,
O líquido límpido dentro do jovem homem.
A corrosão irritada, tão reflexiva e tão dolorosa,
A tormenta, a maré irritável que não se acomodará,
A semelhança dos mesmos eu sinto, a semelhança do mesmo nos outros,
O jovem homem que se excita e se excita, a jovem mulher que se excita e se excita,
O jovem homem que desperta no meio da noite, a mão quente procurando reprimir aquilo que o dominaria,
A noite amorosa do místico, a estranha angústia quase bem-vinda, as visões, o suor,
O pulso que bate pela palma das mãos, cujos dedos tremulam envolventes, o rapaz que tem o rosto vermelho, envergonhado, nervoso;
A salmoura sobre mim vem do mar, meu amante, quando me deito desnudo e ardente,
A folia dos bebês gêmeos que engatinham na grama sob o sol, a mãe em momento algum desvia seu olhar vigilante sobre ambos,
O tronco da nogueira, as cascas das nozes e as nozes que amadurecem ou já maduras, as nozes graúdas,
A continência dos vegetais, dos pássaros, dos animais,
Minha vileza conseqüente; eu deixaria esquivar-me ou achar-me indecente, enquanto os pássaros e os animais nunca se esconderam nem jamais se acharam indecentes,
A grande castidade da paternidade, para equiparar-me à grande castidade da maternidade,
O voto da procriação eu já fiz, minhas filhas adâmicas e novas,
A cobiça que me devora dia e noite com fome roedora, até que eu me enjoe daquilo com que hei de produzir meninos para me substituir quando eu passar,
O alívio por inteiro, o repouso, o contentamento,
E esse bando arrancado de mim ao acaso,
Já cumpriu sua missão – eu o lanço sem cuidado para cair em qualquer parte.

Fonte: Whitman, W. 2006. Folhas de relva. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1856.

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