31 julho 2013

Erros numéricos

Manoel Jairo Bezerra

Na medida de certas grandezas, ou no emprego prático das operações algébricas, é comum o aparecimento de certos números que não representam o seu valor exato mas, apenas, um valor aproximado desses números.

Assim, se uma pessoa colocar em seu carro 15 litros de gasolina, a Cr$ 0,775 o litro, terá de pagar Cr$ 11,625. Efetuará esse pagamento com Cr$ 11,62 ou Cr$ 11,63, por não existir moeda inferior a Cr$ 0,01.

Não será possível também, a um matemático, realizar ou efetuar cálculos exatos com os valores decimais dos números irracionais, tais como π, √2 e √3 ou com dízimas periódicas como as de geratrizes 1/3 ou 14/23, em virtude de possuírem esses números, em sua representação decimal, uma infinidade de algarismos decimais.

Logo, na impossibilidade prática de obter valores exatos de certas medidas, ou, da representação decimal exata de certos números tomamos valores aproximados, o que em geral é obtido limitando as representações decimais desses números.

Procedendo assim estamos cometendo erros.
[...]

Fonte: Bezerra, M. J. 1976. Curso de matemática, 32ª edição. SP, Nacional.

29 julho 2013

A terceira visão

T. Lobsang Rampa

1.
“Olé! Olé! Quatro anos de idade e não se agüenta em cima de um cavalo! Nunca serás um homem! Que dirá teu nobre pai?” Ao dizer isto, o velho Tzu deu no pônei – e no infeliz cavaleiro – uma vigorosa palmada na garupa e cuspiu na poeira.

Os telhados e as cúpulas dourada da Potala cintilavam sob a luz brilhante do Sol. Mais de perto, as águas azuis do lago do Templo da Serpente encrespavam-se com a passagem das aves aquáticas. De mais longe, das distâncias do trilho pedregoso, chegavam os gritos de incitamento dos homens que apressavam os pachorrentos iaques que começavam a sair de Lhasa. De mais perto subiam os ‘bmmn, bmmn, bmmn’ das trombetas contrabaixo enquanto os monges músicos praticavam nos campos, afastados das multidões.

Mas eu não tinha tempo para contemplar essas coisas banais e quotidianas. A minha tarefa era mais séria, e consistia em manter-me no dorso do meu relutante pônei. Nakkim também tinha outras preocupações no seu cérebro. Queria ver-se livre do seu cavaleiro, para pastar, rebolar-se e espernear com as patas no ar.
[...]

Fonte: Rampa, L. s/d [1956]. A terceira visão, 13ª edição. RJ, Record. ‘T. [Tuesday] Lobsang Rampa’ é pseudônimo de Cyril Henry Hoskin.

27 julho 2013

Nossa Senhora da Ternura

K. H. de Josselin de Jong

Nossa Senhora da Ternura,
Abre a ele tua alma pura.

Dissipa a sua noite, e ele veja
Onde estás. Tua mão o proteja.

Afasta-o, Mãe, da gente má,
Para que a ti, puro, ele vá.

Guarda-o da dor, dá-lhe a alegria,
Para que, junto a ti, sorria.

Dá-lhe aos olhos pudor bastante
Para a visão de teu semblante.

Dá-lhe compreensão maior,
Para que entenda o que é o amor.

E além da morte, em teu regaço
Descanse enfim seu corpo lasso.

Nossa Senhora da Ternura,
Bendita sejas, Virgem pura.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.

25 julho 2013

Cozimento e digestibilidade

Richard Wrangham

No final da década de 1990, uma equipe belga de gastroenterologistas testou os efeitos do cozimento pela primeira vez, usando um novo instrumento de pesquisa que permitia acompanhar o destino das proteínas depois de engolidas. Os pesquisadores submeteram galinhas a uma dieta rica em isótopos estáveis de carbono, nitrogênio e hidrogênio. Os átomos marcados infiltraram-se nos ovos, permitindo monitorar o destino das moléculas de proteínas quando eles eram comidos. Para determinar quanto de uma refeição de ovos era digerido e absorvido no corpo, adotaram o mesmo método usado antes em estudos da digestibilidade do amido: colheram os restos alimentares da extremidade do intestino delgado das pessoas, o íleo. Qualquer proteína ainda não digerida quando chegava ao íleo era metabolicamente inútil para quem a comia, porque no intestino grosso bactérias e protozoários digerem as proteínas alimentares inteiramente em benefício próprio.

Inicialmente os pesquisadores trabalharam apenas com pacientes de ileostomia; mais tarde, porém, puderam verificar seus resultados com indivíduos saudáveis também. Os pacientes de ileostomia e os voluntários com saúde comiam cerca de quatro ovos crus ou cozidos, contendo um total de 25 gramas de proteína. Os resultados foram semelhantes para os dois grupos. Quando os ovos eram cozidos, a proporção de proteína digerida era em média de 91% a 94%. Esse número alto correspondia ao esperado, pois a proteína do ovo é sabidamente um excelente alimento. Nos pacientes de ileostomia, no entanto, a digestibilidade de ovos crus foi medida em parcos 51%. Foi um pouco mais alta, 65%, nos pacientes saudáveis, cuja digestão de proteína foi estimada pelo aparecimento de isótopos estáveis no hálito. Os resultados mostraram que 35% a 49% da proteína ingerida estavam deixando o intestino delgado sem serem digeridos. O cozimento aumentava o valor protéico de ovos em cerca de 40%.
[...]

Fonte: Wrangham, R. 2010. Pegando fogo. RJ, Jorge Zahar.

23 julho 2013

O ladrão de versos


Uma gargalhada de meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingénuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro de meu filho.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1969.

21 julho 2013

Os meninos aquáticos


Jessie Willcox Smith (1863-1935). The water-babies. Circa 1916.

Fonte: Wikipedia.

19 julho 2013

Para uns, negro

Rosalía de Castro

Para uns, negro;
para outros, branco;
e para todos,
deslocado.
Rosalía de Castro

1.
– Sê astuto, se é que sabes;
Vinga-te das ofensas, se é que podes;
A quem te sirva, paga-lhe;
Mas a quem não te dá, nunca dês;
Porque a moral dos santos
Não reza sempre com a moral dos homens.

Isto um galego montanhês e rude,
Farto de humilhações e de rancores,
Ao agonizar aconselhava a um filho,
Herdeiro dos seus males e do seu nome.

2.
– Sé ingênuo e leal sempre,
Perdoa a quem te ofenda,
Faze sempre o bem a amigos e inimigos
E, com a porta aberta, sem temor, espera:
Não há mais do que um Deus e uma moral que salve
Os tristes filhos de Eva.

Isto a pobre viúva
Do montanhês, morrendo na miséria,
Resignada a seu filho dizia...
E a Deus a alma entregou serena.

3.
E fez-lhe ele as honras,
Mas só com gemidos e com lágrimas;
Padre não houve ao redor, que à pobre
O enterro de esmola lhe cantasse.
Num canto do átrio,
Juntos às ásperas hortelãs que medravam,
Sem cruz, sinal ou lousa,
Ali ficou perdida e sepultada;
E triste e só o filho
Tornou, sanhoso, à solitária casa.

– Meu pai deu-me um conselho – ia pensando –
E minha mãe deu-me outro;
E se ela tinha santidade e consciência,
Experiência e saber tinha ele bastante.
Sou filho dele e dela...
Partirei, pois, a herança em duas partes.
Minha mãe, farei o bem a quem te fez...
Meu pai, vingança pedem teus ossos.

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM. Poema publicado em livro em 1880.

17 julho 2013

A galinha ruiva

Penrhyn W. Coussens

Se queremos dividir a recompensa, devemos partilhar o trabalho.

Um dia uma galinha ruiva encontrou um grão de trigo.
– Quem me ajuda a plantar este trigo? – perguntou aos seus amigos.
– Eu não – disse o cão.
– Eu não – disse o gato.
– Eu não – disse o porquinho.
– Eu não – disse o peru.
– Então eu planto sozinha – disse a galinha. – Cocoricó!
E foi isso mesmo que ela fez. Logo o trigo começou a brotar e as folhinhas, bem verdinhas, a despontar. O sol brilhou, a chuva caiu e o trigo cresceu e cresceu, até ficar bem alto e maduro.
– Quem me ajuda a colher o trigo? – perguntou a galinha aos seus amigos.
– Eu não – disse o cão.
– Eu não – disse o gato.
– Eu não – disse o porquinho.
– Eu não – disse o peru.
– Então eu colho sozinha – disse a galinha. – Cocoricó!
E foi isso mesmo que ela fez.
– Quem me ajuda a debulhar o trigo? – perguntou a galinha aos seus amigos.
– Eu não – disse o cão.
– Eu não – disse o gato.
– Eu não – disse o porquinho.
– Eu não – disse o peru.
– Então eu debulho sozinha – disse a galinha. – Cocoricó!
E foi isso mesmo o que ela fez.
– Quem me ajuda a levar o trigo ao moinho? – perguntou a galinha aos seus amigos.
– Eu não – disse o cão.
– Eu não – disse o gato.
– Eu não – disse o porquinho.
– Eu não – disse o peru.
– Então eu levo sozinha – disse a galinha. – Cocoricó!
E foi isso mesmo o que ela fez. Quando, mais tarde, voltou com a farinha, perguntou:
– Quem me ajuda a assar essa farinha?
– Eu não – disse o cão.
– Eu não – disse o gato.
– Eu não – disse o porquinho.
– Eu não – disse o peru.
– Então eu asso sozinha – disse a galinha. – Cocoricó!
A galinha ruiva assou a farinha e com ela fez um lindo pão.
– Quem quer comer esse pão? – perguntou a galinha.
– Eu quero – disse o cão.
– Eu quero – disse o gato.
– Eu quero – disse o porquinho.
– Eu quero – disse o peru.
– Isso é que não! Sou eu quem vai comer esse pão! – disse a galinha. – Cocoricó!
E foi isso mesmo que ela fez.

Fonte: Bennett, W. J., org. 1997. O livro das virtudes para crianças. RJ, Nova Fronteira. Conto popular. A versão acima foi publicada em livro em 1911.

15 julho 2013

Meditação sobre o Tietê


Água do meu Tietê,
Onde me queres levar?
– Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...

É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite de tão vasta
O peito do rio, que é como si a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De repente
O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana.

Meu rio, meu Tietê, onde me levas?
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?...
Por que me proíbes assim praias e mar, por que
Me impedes a fama das tempestades do Atlântico
E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?
Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,
Me induzindo com a tua insistência turrona paulista
Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...

Já nada me amarga mais a recusa da vitória
Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim.
Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,
E fui por tuas águas levado,
A me reconciliar com a dor humana pertinaz,
E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens.
Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dor
Por minhas mãos, por minhas desvividas mãos, por
Estas minhas próprias mãos que me traem,
Me desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos,
Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciada
Se perdeu em cisco e polem, cadáveres e verdades e ilusões.

Mas porém, rio, meu rio, de cujas águas eu nasci,
Eu nem tenho direito mais de ser melancólico e frágil,
Nem de me estrelar nas volúpias inúteis da lágrima!
Eu me reverto às tuas águas espessas de infâmias,
Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujado
De infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes,
Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas,
Varando terra adentro no espanto dos mil futuros,
À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto final!
Eu desisti! Mas do ponto entre as águas e a noite,
Daquele ponto leal à terrestre pergunta do homem,
De que o homem há-de nascer.

Eu vejo, não é por mim, o meu verso tomando
As cordas oscilantes da serpente, rio.
Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou.
Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência
Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu.
Contágios, tradições, brancuras e notícias,
Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas, fechado, mudo,
Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora.

Destino, predestinações... meu destino. Estas águas
Do meu Tietê são abjetas e barrentas,
Dão febre, dão a morte decerto, e dão garças e antíteses.
Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo
Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,
Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.
Isto não são águas que se beba, conhecido, isto são
Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós
Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás,
Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi Paciência
Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos
Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal.

Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águas
São malditas e dão morte, eu descobri! e é por isso
Que elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos homens,
Paspalhonas. Isto não são águas que se beba, eu descobri!
E o meu peito das águas se esborrifa, ventarrão vem, se encapela
Engruvinhado de dor que não se suporta mais.

Me sinto o pai Tietê! ôh força dos meus sovacos!
Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!
Nordeste de impaciente amor sem metáforas,
Que se horroriza e enraivece de sentir-se
Demagogicamente tão sozinho! Ôh força!
Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima que me inunda,
Me alarma e me destroça, inerme por sentir-me
Demagogicamente tão só!

A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tua
Si as tuas águas estão podres de fel
E majestade falsa? A culpa é tua
Onde estão os amigos? onde estão os inimigos?
Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, e
Os iletrados?
Onde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis Quiroga!
E os Prados e os crespos e os pratos e os barbas e os gatos e os línguas
Do Instituto Histórico e Geográfico, e os museus e a Cúria, e os senhores chantres reverendíssimos,
Celso niil estate varíolas gide memoriam,
Calípedes flogísticos e a Confraria Brasiliense e Clima
E os jornalistas e os trustkistas e a Light e as
Novas ruas abertas e a falta de habitações e
Os mercados?... E a tiradeira divina de Cristo!...

Tu és Demagogia. A própria vida abstrata tem vergonha
De ti em tua ambição fumarenta.
És demagogia em teu coração insubmisso.
És demagogia em teu desequilíbrio anticéptico
E antiuniversitário.
És demagogia. Pura demagogia.
Demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas.
Mesmo irrespirável de furor na fala reles:
Demagogia.
Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia:
Demagogia.
Tu és em meio à (crase) gente pia:
Demagogia.
És tu jocoso enquanto o ato gratuito se esvazia:
Demagogia.
És demagogia, ninguém chegue perto!
Nem Alberto, nem Adalberto nem Dagoberto
Esperto Ciumento Peripatético e Ceci
E Tancredo e Afrodísio e também Arminda
E o próprio Pedro e também Alcibíades,
Ninguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor,
O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bem
Sutis!... E as tuas mãos se emaranham lerdas,
E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno,
Porque és demagogia e tudo é demagogia.

Olha os peixes, demagogo incivil! Repete os carcomidos peixes!
São eles que empurram as águas e as fazem servir de alimento
Às areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro,
Esse um é presidente, mantém faixa de crachá no peito,
Acirculado de tubarões que escondendo na fuça rotunda
O perrepismo dos dentes, se revezam na rota solene,
Languidamente presidenciais. Ei-vem o tubarão-martelo
E o lambari-spitfire. Ei-vem o boto-ministro.
Ei-vem o peixe-boi com as mil mamicas imprudentes,
Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranas
Em zás-trás dos guapos Pêdêcês e Guaporés.
Eis o peixe-baleia entre os peixes muçuns lineares,
E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses;
Mas és asnático o peixe-baleia e vai logo encalhar na margem,
Pois quis engolir a própria margem, confundido pela facheada,
Peixes aos mil e mil, como se diz, brincabrincando
De dirigir a corrente com ares de salva-vidas.
E lá vem por debaixo e por-de-banda os interrogativos peixes
Internacionais, uns rubicundos sustentados de mosca,
E os espadartes a trote chique, esses são espadartes! e as duas
Semanas Santas se insultam e odeiam, na lufa-lufa de ganhar
No bicho o corpo do Crucificado. Mas as águas,
As águas choram baixas num murmúrio lívido, e se difundem
Tecidas de peixe e abandono, na mais incompetente solidão.

Vamos, Demagogia! eia! sus! aceita o ventre e investe!
Berra de amor humano impenitente,
Cega, sem lágrimas, ignara, colérica, investe!
Um dia hás-de ter razão contra a ciência e a realidade,
E contra os fariseus e as lontras luzidias.
E contra os guarás e os elogiados. E contra todos os peixes.
E também os mariscos, as ostras e os trairões fartos de equilíbrio e
Pundhonor.
Pum d’honor.
Qué-de as Juvenilidades Auriverdes!
Eu tenho medo... Meu coração está pequeno, é tanta
Essa demagogia, é tamanha,
Que eu tenho medo de abraçar os inimigos,
Em busca apenas dum sabor,
Em busca dum olhar,
Um sabor, um olhar, uma certeza...

É noite... Rio! meu rio! meu Tietê!
É noite muito!... As formas... Eu busco em vão as formas
Que me ancorem num porto seguro na terra dos homens.
É noite e tudo é noite. O rio tristemente
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
Água noturna, noite líquida... Augúrios mornos afogam
As altas torres do meu exausto coração.
Me sinto esvair no apagado murmulho das águas.
Meu pensamento quer pensar, flor, meu peito
Quereria sofrer, talvez (sem metáfora) uma dor irritada...
Mas tudo se desfaz num choro de agonia
Plácida. Não tem formas nessa noite, e o rio
Recolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge,
E me larga desarmado nos transes da enorme cidade.

Si todos esses dinossauros imponentes de luxo e diamante,
Vorazes de genealogia e de arcanos,
Quisessem reconquistar o passado...
Eu me vejo sozinho, arrastando sem músculo
A cauda do pavão e mil olhos de séculos,
Sobretudo os vinte séculos de anticristianismo
Da por todos chamada Civilização Cristã...
Olhos que me intrigam, olhos que me denunciam,
Da cauda do pavão, tão pesada e ilusória.
Não posso continuar mais, não tenho, porque os homens
Não querem me ajudar no meu caminho.
Então a cauda se abriria orgulhosa e reflorescente
De luzes inimagináveis e certezas...
Eu não seria tão-somente o peso deste meu desconsolo,
A lepra do meu castigo queimando nesta epiderme
Que encurta, me encerra e me inutiliza na noite,
Me revertendo minúsculo à advertência do meu rio.
Escuto o rio. Assunto estes balouços em que o rio
Murmura num banzeiro. E contemplo
Como apenas se movimenta escravizada a torrente,
E rola a multidão. Cada onda que abrolha
E se mistura no rolar fatigado é uma dor. E o surto
Mirim dum crime impune.

Vêm de trás o estirão. É tão soluçante e tão longo,
E lá na curva do rio vêm outros estirões e mais outros,
E lá na frente são outros, todos soluçantes e presos
Por curvas que serão sempre apenas as curvas do rio.
Há de todos os assombros, de todas as purezas e martírios
Nesse rolo torvo das águas. Meu Deus! meu
Rio! como é possível a torpeza da enchente dos homens!
Quem pode compreender o escravo macho
E multimilenar que escorre e sofre, e mandado escorre
Entre injustiça e impiedade, estreitado
Nas margens e nas areias das praias sequiosas?
Elas bebem e bebem. Não se fartam, deixando com desespero
Que o rosto do galé aquoso ultrapasse esse dia,
Pra ser represado e bebido pelas outras areias
Das praias adiante, que também dominam, aprisionam e mandam
A trágica sina do rolo das águas, e dirigem
O leito impassível da injustiça e da impiedade.
Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rio
Que sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vez
De ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas,
Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens,
Dando sangue e vida a beber. E a massa líquida
Da multidão onde tudo se esmigalha e se iguala,
Rola pesada e oliosa, e rola num rumor surdo,
E rola mansa, amansada imensa eterna, mas
No eterno imenso rígido canal da estulta dor.

Porque os homens não me escutam! Por que os governadores
Não me escutam? Por que não me escutam
Os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes?
Todos os donos da vida?
Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo,
Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do grito
Metálico dos números, e tudo
O que está além da insinuação cruenta da posse.
E si acaso eles protestassem, que não! que não desejam
A borboleta translúcida da humana vida, porque preferem
O retrato a ólio das inaugurações espontâneas,
Com béstias de operário e do oficial, imediatamente inferior.
E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a profunda comoção,
Pois não! Melhor que isso eu lhes dava uma felicidade deslumbrante
De que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei.
Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezes
De mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos,
Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante:
Nós nos iríamos de camisa aberta ao peito,
Descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio,
Entrando na terra dos homens ao coro das quatro estações.

Pois que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva,
E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas,
E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor...
Eu estalo de amor e sou só amor arrebatado
Ao fogo irrefletido do amor.
... eu já amei sozinho comigo; eu já cultivei também
O amor do amor, Maria!
E a carne plena da amante, e o susto vário
Da amiga, e a inconfidência do amigo... Eu já amei
Contigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, escolhido
Pelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal.
E também, ôh também! na mais impávida glória
Descobridora da minha inconstância e aventura,
Desque me fiz poeta e fui trezentos, eu amei
Todos os homens, odiei a guerra, salvei a paz!
E eu não sabia! Eu bailo de ignorâncias inventivas,
E a minha sabedoria vem das fontes que eu não sei!
Quem move meu braço? Quem beija por minha boca?
Quem sofre e se gasta pelo meu renascido coração?
Quem? sinão o incêndio nascituro do amor?...
Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras,
Bardo mestiço, e o meu verso vence a corda
Da caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares, e enrouquece
Úmido nas espumas da água do meu rio,
E se espatifa nas dedilhações brutas do incorpóreo Amor.

Por que os donos da vida não me escutam?
Eu só sei que eu não sei por mim! sabem por mim as fontes
Da água, e eu bailo de ignorâncias inventivas.
Meu baile é solto como a dor que range, meu
Baile é tão vário que possui mil sambas insonhados!
Eu converteria o humano crime num baile mais denso
Que estas ondas negras de água pesada e oliosa,
Porque os meus gestos e os meus ritmos nascem
Do incêndio puro do amor... Repetição. Primeira voz sabida, o Verbo.
Primeiro troco. Primeiro dinheiro vendido. Repetição logo ignorada.
Como é possível que o amor se mostre impotente assim
Ante o ouro pelo qual o sacrificam os homens,
Trocando a primavera que brinca na face das terras
Pelo outro tesouro que dorme no fundo baboso do rio!

É noite! é noite!... E tudo é noite! E os meus olhos são noite!
Eu não enxergo siquer as barcaças na noite.
Só a enorme cidade. E a cidade me chama e pulveriza,
E me disfarça numa queixa flébil e comedida,
Onde irei encontrar a malícia do Boi Paciência
Redivivo. Flor. Meu suspiro ferido se agarra,
Não quer sair, enche o peito de ardência ardilosa,
Abre o olhar, e o meu olhar procura, flor, um tilintar
Nos ares, nas luzes longe, no peito das águas,
No reflexo baixo das nuvens.

São formas... Formas que fogem, formas
Indivisas, se atropelando, um tilintar de formas fugidias
Que mal se abrem, flor, se fecham, flor, flor, informes, inacessíveis,
Na noite. E tudo é noite. Rio, o que eu posso fazer!...
Rio, meu rio... mas porém há-de haver com certeza
Outra vida melhor do outro lado de lá
Da serra! E hei-de guardar silêncio!
O que eu posso fazer!... hei-de guardar silêncio
Deste amor mais perfeito do que os homens?...

Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado.
No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável!
Eu sou maior que os vermes e todos os animais.
E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,
Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado,
Maior que a estrela, maior que os adjetivos,
Sou homem! vencedor das mortes, bem-nascido além dos dias,
Transfigurado além das profecias!

Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança.
Eu me acho tão cansado em meu furor.
As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista
Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas
Para o peito dos sofrimentos dos homens.
... e tudo é noite. Sob o arco admirável
Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca,
Uma lágrima apenas, uma lágrima,
Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema publicado em livro em 1947.

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