09 maio 2013

Do nada ao todo

Nicolas Witkowski

Um simples nome basta para fazer empalidecer os adeptos do positivismo, ameaçar de apoplexia os paladinos de um progresso científico linear e engasgar os partidários do sacrossanto ‘método científico’: Johannes Kepler (1571-1630). Já considerado em vida criatura inclassificável, tornou-se, na história das ciências, um ícone que resume toda a dificuldade de pensar os primórdios da ciência moderna. Kepler foi objeto de vários trabalhos de pesquisa, e são incontáveis, depois de Arthur Koestler, os biógrafos desse personagem de romance. Que tal indivíduo, depositário dos trabalhos do dinamarquês Tycho Brahe, apaixonado pela astrologia e a mística, terçando armas (a pluma) tanto com o físico italiano Galileu como com o astrólogo inglês Robert Fludd, tenha conseguido, pioneiramente, compreender o movimento dos planetas permanece um enigma significativo no âmbito do que hoje chamamos de ciência.

Kepler não mostrava de fato nenhum dos traços distintivos do ‘cientista’ futuro. Nem matemático excepcional, como seria Newton, nem deliberadamente racionalista, como se tornaria Descartes, permaneceu um homem do Renascimento atípico perdido no século 17, um desses eruditos barrocos, curiosos por tudo e profundamente religiosos, que viam por trás de cada fenômeno de natural a mão de um Deus onisciente. Mas o olhar de Kepler era de uma excepcional acuidade, e de um modernismo perturbador. Enquanto Galileu observava os planetas com a luneta, era Kepler quem explicava o funcionamento desse aparelho – atitude decisiva numa época que hesitava em qualificar como ilusórias as visões instrumentalizadas dos astrônomos. Enquanto a revolução copernicana insistia na circularidade dos orbes planetários, Kepler era o primeiro a falar em órbitas elípticas (1609), e a definir sua forma com notável precisão. Ora, o que reconhecemos atualmente como etapas essenciais no caminho da Razão científica não passava, para Kepler, do resultado de um jogo intelectual do qual a intuição e as considerações estéticas nunca estavam ausentes.
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Fonte: Witkowski, N. 2004. Uma história sentimental das ciências. RJ, Jorge Zahar.

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