29 novembro 2012

Voltarão as escuras andorinhas

Gustavo Adolfo Bécquer

Voltarão as escuras andorinhas
A em teu balcão seus ninhos pendurar,
E aos teus cristais com a asa novamente
Brincando chamarão;

Mas aquelas que o vôo interrompiam,
Teu rosto e o meu enleio a contemplar,
Aquelas que aprenderam nossos nomes...
Essas não voltarão!

Voltarão as espessas madressilvas
De teu jardim as cercas a escalar,
E de tarde, outra vez, ainda mais belas,
As flores abrirão;

Mas aquelas, molhadas pelo orvalho,
Cujas gotas olhávamos rolar
E cair como lágrimas do dia…
Essas não voltarão!

E voltarão do amor aos teus ouvidos
As palavras ardentes a soar;
Teu coração do seu profundo sono
Talvez despertará;

Mudo porém, e absorto e de joelhos,
Como se adora a Deus em seu altar,
Como eu sempre te quis... ah, desengana-te,
Nunca te quererão!

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. O trecho acima integra uma obra mais ampla, intitulada Rimas, publicada em livro em 1871.

27 novembro 2012

Como compreender tudo isso?

Michael J. Benton

É difícil entender a história da vida na Terra. Um sem-número de animais e plantas estranhos e extraordinários possivelmente passa diante de nossos olhos quando pensamos na pré-história: homem de Neandertal, mamutes, dinossauros, amonites, trilobitas... e, é claro, uma época em que não havia vida alguma, ou, quando muito, apenas seres microscópicos de extrema simplicidade flutuando no oceano primitivo.

Essas impressões vêm de muitas fontes. As crianças de hoje são desmamadas com livros de dinossauros, e as imagens de dinossauros vivos e respirando estão em toda parte, no cinema e nos documentários televisivos. E, assim como as crianças, muitos adultos visitam falésias ou pedreiras e coletam seus próprios trilobitas ou amonites fósseis. Esses fósseis comuns, assim como outros exemplos belos e espetaculares , tais como petrificações de peixes primorosos mostrando todas as suas escamas – ainda brilhantes após milhões de anos –, podem ser vistos em lojas de fósseis, em fotografias em livros ilustrados e na internet.

A maioria das pessoas sabe que os dinossauros, apesar de sua onipresença na cultura moderna, viveram muito antes dos primeiros humanos, e que, antes de existirem, houve imensos períodos de tempo povoados por animais e plantas ainda mais estranhos e raros, como compreender tudo isso?
[...]

Fonte: Benton, M. J. 2012. História da vida. Porto Alegre, L&PM.

25 novembro 2012

O carvão e o diamante

Hermes Fontes

Teceis, Senhor, de insólitos contrastes,
a matéria que jaz e a essência que erra.
Foi das classes humílimas da Terra
que o vosso filho e intérprete tirastes.

Fizestes, lado a lado, o abismo e a serra...
E aos astros, nos seus rútilos engastes,
destes a luz eterna, e os distanciastes
lá longe, como a alguém que se desterra!

No carvão escondestes o diamante.
E ocultastes as pérolas, sob a água,
e os oásis, sob a areia transitória,

E foi à alma de um negro agonizante
que houvestes a mais pura flor da Mágoa
e a dor mais alta pelo Amor e a Glória!

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 6. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1922, com a dedicatória “Pensando em Cruz e Souza”.

23 novembro 2012

Qual papa-peixe chameja ao sol e a libélula chispa em chama

Gerard Manley Hopkins

Qual papa-peixe chameja ao sol e a libélula chispa em chama;
Qual seixos jogados no poço redondo reboam;
Qual corda dedilhada canta; e, tocados, os sinos ressoam,
Em cada bojo percutindo a língua que seu nome proclama;
Cada coisa mortal faz algo típico assim:
Existe aquele ser dentro do qual habita,
Torna-se ela mesma; “Eu mesma”, ela silaba e grita,
Clamando, “O que faço sou eu: para isso eu vim”.

Digo mais: o justo pratica com fé a justiça;
Guarda a graça: e de tudo nele a graça promana;
Age aos olhos de Deus o que a seus olhos ele é –
Cristo. Pois a figura de Cristo a mil papéis é submissa,
Formoso nos membros, formoso em olhos não seus,
Ele apresenta-se ao Pai através da face humana.

Fonte: Hopkins, G. M. 1989. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema publicado em livro em 1918.

21 novembro 2012

Menina lendo


Charles Edward Perugini (1839-1918). Girl reading. 1878. [Obra também conhecida como ‘In the orangerie’.]

Fonte da foto: Art Renewal Center.

19 novembro 2012

A arte de resolver problemas

George Pólya

1.
Um dos mais importantes deveres do professor é o de auxiliar os seus alunos, o que não é fácil, pois exige tempo, prática, dedicação e princípios firmes.

O estudante deve adquirir tanta experiência pelo trabalho independente quanto lhe for possível. Mas se ele for deixado sozinho, sem ajuda ou com auxílio insuficiente, é possível que não experimente qualquer progresso. Se o professor ajudar demais, nada restará para o aluno fazer. O professor deve auxiliar, nem demais nem de menos, mas de tal modo que ao estudante caiba uma parcela razoável do trabalho.

Se o aluno não for capaz de fazer muita coisa, o mestre deverá deixar-lhe pelo menos alguma ilusão de trabalho independente. Para isso, deve auxiliá-lo discretamente, sem dar na vista.

O melhor é, porém, ajudar o estudante com naturalidade. O professor deve colocar-se no lugar do aluno, perceber o ponto de vista deste, procurar o que se passa em sua cabeça e fazer uma pergunta ou indicar um passo que poderia ter ocorrido ao próprio estudante.
[...]

Fonte: Pólya, G. 2006 [1957]. A arte de resolver problemas, 2ª edição. RJ, Interciência.

17 novembro 2012

O amor, o desprezo e a esperança


Eu te peguei junto ao meu peito como uma pomba que uma menina asfixia sem saber
Eu te peguei com toda a tua beleza tua beleza mais rica que todos os garimpos da Califórnia o foram no tempo da febre do ouro
Enchi minha avidez sensual de teu sorriso de teus olhares de teus gemidos
Possuí tive ao meu dispor o teu orgulho mesmo quando te mantinha agachada e sofrias meu poder e minha dominação
Pensei ter tudo isto e era só um prestígio
E fico igual a Íxion depois que ele fez amor com o fantasma de nuvens feito à semelhança daquela que chamam Hera ou Juno a invisível
E quem pode agarrar as nuvens quem pode pôr a mão sobre uma miragem e que se engana aquele que crê encher os braços do azul celeste
Acreditei possuir toda a tua beleza e tive só o teu corpo
O corpo infelizmente não tem a eternidade
O corpo tem a função de gozar mas não tem o amor
E é em vão agora que tento abraçar teu espírito
Ele foge ele me foge de todo lugar como um nó de serpentes que se desfaz
E teus belos braços no longínquo horizonte são cobras cor de aurora que se enrolam em sinal de adeus
Fico confuso fico confundido me sinto cansado deste amor que você despreza
Sinto vergonha deste amor que desprezas tanto
O corpo não vai sem a alma
E como poderei esperar reencontrar teu corpo de antes já que tua alma está tão longe de mim
E que o corpo se juntou à alma
Como fazem todos os corpos vivos
Ó tu que eu só possuí morta

*

E no entanto enquanto eu às vezes olho ao longe se chega o oficial dos correios
E que espero como uma delícia tua carta cotidiana meu coração pula como um cabrito quando vejo chegar o mensageiro
E imagino então coisas impossíveis já que teu coração não está comigo
E imagino então que vamos embarcar nós dois sozinhos talvez três e que nunca ninguém no mundo saberia nada de nossa querida viagem ao nada mas para outra parte e para sempre
Neste mar azul ainda mais azul que todo azul do mundo
Neste mar onde nunca se gritaria Terra à vista
Para tua atenta beleza meus cantos mais puros que todas as palavras subiriam mais livres ainda do que as ondas
Será tarde demais meu coração para esta misteriosa viagem
O barco nos espera é a nossa imaginação
E a realidade nos alcançará um dia se as almas se alcançarem
Para a bela demais romaria

*

Vamos meu coração de homem a lâmpada vai apagar-se
Derrama nela o teu sangue
Vamos minha vida alimenta esta lâmpada de amor
Vamos canhões abram a estrada
E que chegue enfim o tempo vitorioso o querido tempo do retorno

*

Dou à minha esperança meus olhos estas pedrarias
Dou à minha esperança minhas mãos palmas da vitória
Dou à minha esperança meus pés carros de triunfo
Dou à minha esperança minha boca este beijo
Dou à minha esperança minhas narinas que perfumam as flores de meados de maio
Dou à minha esperança meu coração de promessa
Dou à minha esperança todo o futuro que treme como pequena luz ao longe na floresta

Fonte: Apollinaire. 2005. Álcoois e outros poemas. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1947.

15 novembro 2012

O contador de areia

Carl B. Boyer & Uta C. Merzbach

Na Grécia antiga fazia-se uma clara distinção não só entre teoria e aplicação, como também entre computação mecânica de rotina e o estudo teórico das propriedades dos números. À primeira, para a qual os matemáticos gregos, ao que se diz, olhavam com desprezo, era dado o nome de logística, enquanto a aritmética, um respeitável assunto de investigação filosófica, tratava apenas [com] esse último aspecto.

Arquimedes viveu mais ou menos na época em que se efetivou a transição da numeração ática para a jônica, e isso pode explicar o fato de ele ter-se rebaixado a dar uma contribuição à logística. Em uma obra chamada Psammites (Contador de areia), Arquimedes se gabava de poder escrever um número maior do que o número de grãos de areia necessários para encher o universo. Ao fazer isso, ele se referia a uma das mais audaciosas especulações astronômicas da antiguidade – aquela em que Aristarco de Samos, por meados do terceiro século a.C., propunha pôr a Terra em movimento ao redor do Sol. Aristarco afirmou que a ausência de paralaxe foi o fator que levou os maiores astrônomos da antiguidade (incluindo, provavelmente, Arquimedes) a rejeitar a hipótese heliocêntrica; mas Aristarco afirmou que a ausência de paralaxe pode ser atribuída à enormidade da distância das estrelas fixas à Terra. Agora, para cumprir sua palavra, Arquimedes tinha, por força, que prever todas as possíveis dimensões do universo, e, portanto, mostrou que podia enumerar os grãos de areia necessários para preencher mesmo o imenso mundo de Aristarco.

Para o universo de Aristarco, que está para o universo ordinário assim como esse está para a Terra, Arquimedes mostrou que são necessários não mais que 1063 grãos de areia. Arquimedes não usou essa notação, mas em vez disso descreveu o número como sendo dez milhões de unidades da oitava ordem de números (em que os números de segunda ordem começam com uma miríade de miríades, e os de oitava com a sétima potência de uma miríade de miríades). Para mostrar que podia exprimir um número maior ainda, Arquimedes estendeu sua terminologia para chamar todos os números de ordem menor que uma miríade de miríades os do primeiro período, o segundo período, consequentemente, começando [com] o número (108)108, um número que teria 800.000.000 de algarismos. Isto é, seu sistema iria até um número que se escrevesse como 1, seguido de uns oitenta mil milhões de milhões de algarismos. Foi em conexão com esse trabalho sobre números imensos que Arquimedes mencionou, muito incidentalmente, o princípio que mais tarde levou à invenção dos logaritmos – a adição das ‘ordens’ dos números (o equivalente de seus expoentes quando a base é 100.000.000) corresponde a achar o produto dos números.

Fonte: Boyer, C. B. & Merzbach, U. C. 2012. História da matemática, 3ª edição. SP, Blücher.

12 novembro 2012

Seis anos e um mês no ar

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/11, o Poesia contra a guerra completa seis anos e um mês no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 188.359 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Aniversário de seis anos – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Autran Dourado, Craig Silvey, Gustave Flaubert, Juó Bananère, León Gieco, Luigi Fiorentino, Mariana Botelho, Piero Pasolini e Tom Garrison. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Gabriël Metsu, Mikhail Nesterov e Pierre-Joseph Redouté.

10 novembro 2012

Rude-suave amigo


Henry Miller planando no espaço em rudes soluços:
“Sofro como um animal. Sou como um animal. Ninguém pode ajudar-me.
Ninguém é forte para tal esforço.” Anaïs a dizer-lhe
que a força é questão de ritmo. Quem não precisa
ser socorrido alguma vez? Mas é preciso humanamente
aproximar-se dos outros. “Mas tu – Henry – pareces incapaz
de ficar próximo de alguém.” O mesmo diálogo se repete
entre eles em outras latitudes, tempos diferentes.
Trabalham juntos à beira da loucura, odiados e louvados
em dias consecutivos por sucessivas pessoas ou pelas mesmas.
Gêmeos divinos que a insanidade transforma em pactuários.
Sempre ficam à margem ou no centro instável de uma
compreensão equivocada. Entre céu e terra os ecos
inumeráveis desse diálogo. Comunhão e distância – coisas tão diversas!
Próximos apenas da solidão comungam na missa
de todos os dias e de todos os santos.

Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 1999.

08 novembro 2012

Ela repete

Mariana Botelho

ela repete
o hortelã na boca

repete o nome da distância –

repete o nome do abismo –

repete o rito de amar os filhos
no corpo feito para abrigar temporais

Fonte: poema originalmente publicado no livro o silêncio tange o sino (2010, Ateliê Editorial) e republicado aqui com o devido consentimento da autora, a quem agradeço pela cortesia.

06 novembro 2012

A visão do jovem Bartolomeu


Mikhail Nesterov (1862-1942). La vision du jeune Bartholomée. 1890-1.

Fonte da foto: Wikipedia.

04 novembro 2012

Escalada ao céu

Luigi Fiorentino

Alta se arqueia a abóbada celeste,
Onde há um brilho de flores (e são mundos!),
Vagueiam sombras afanosamente.

Misteriosa a voz que assim me chama
A subir. Escalada interminável,
Áspera e ansiosa. Em vão, em vão procuro
O meu céu (tão longínquo!). Em vão, perdida
A terra para mim, clamo por entre
Aqueles mundos. Só, minha voz perde-se
Nos profundos silêncios desta noite.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema publicado em livro em 1948.

02 novembro 2012

O segredo de Jasper Jones

Craig Silvey

1.
Jasper Jones veio até a minha janela.

Não sei por que, mas veio. Talvez esteja enrascado. Talvez não tenha outro lugar aonde ir.

De qualquer maneira, ele simplesmente me deixou borrado de medo.

Este é o verão mais quente de que consigo me lembrar, e o calor espesso parece penetrar e permanecer no meu quarto. É como se o centro da Terra fosse aqui. O único alívio é o ar mais frio que se infiltra por entre as ripas finas da minha única janela. É quase impossível dormir, portanto passei a maior parte das minhas noites lendo à luz do meu lampião a querosene.

Hoje não foi diferente. E, quando Jasper Jones bateu abruptamente nas ripas com o nó do dedo e sussurrou meu nome, pulei da cama, derrubando meu exemplar de Pudd’nhead Wilson.

– Charlie! Charlie!

Ajoelhei-me como um corredor, alerta e temeroso.

– Quem é?

– Charlie! Venha aqui fora!

– Quem é?

– É o Jasper!

– O quê? Quem?

– Jasper. Jasper! – Ele pressionou o rosto na direção da luz. Os olhos eram verdes e selvagens. Franzi o cenho.

– O quê? Sério? O que é?

– Preciso da sua ajuda. Venha aqui fora e eu explico – sussurrou ele.

– O quê? Por quê?

– Jesus Cristo, Charlie! Depressa! Venha aqui fora.

E, assim, aqui está ele.

Jasper Jones está à minha janela.

Tremendo, subo na cama e removo as ripas de vidro empoeirado, empilhando-as sobre o travesseiro. Rapidamente, enfio uma calça jeans e apago o lampião com um sopro. Ao me espremer para fora do quarto, a cabeça primeiro, algo invisível puxa minhas pernas. É a primeira vez que ouso sair escondido de casa. A emoção, junto ao fato de que Jasper Jones precisa da minha ajuda, já faz desse momento algo maravilhoso.
[...]

Fonte: Silvey, C. 2012 [2009]. O segredo de Jasper Jones. RJ, Intrínseca.

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