29 setembro 2012

Vício, entorpecentes, narcóticos

James R. Weeks

O vício em entorpecentes é um distúrbio complexo, tanto do ponto de vista médico como social. O viciado típico sofre de uma perturbação psiquiátrica subjacente, muitas vezes agravada por pressões econômicas e sociais e pela censura legal; sua doença não parece a mesma para o farmacologista, o médico ou psiquiatra, o assistente social e a polícia. O pesquisador que queira conhecer o vício de drogas dos seres humanos, estudando-o em animais, corre, assim, um sério risco de supersimplificação. Ainda assim, há aspectos físicos do vício que podem ser reproduzidos em ratos ou macacos, e através dos anos se obtiveram muitas informações sobre esses efeitos por estudos de laboratório. Uma coisa estava faltando: o aspecto comportamental essencial do vício, a auto-administração voluntária de uma droga pelo indivíduo viciado. Há poucos anos elaborei um método pelo qual ratos viciados em morfina podem dar-se injeções à vontade, e experimentos subseqüentes trouxeram alguns dados interessantes sobre o comportamento de procura da droga, nesses animais.

A Organização Mundial de Saúde descreve o vício de entorpecentes como um estado de intoxicação periódica ou crônica, detrimental para o indivíduo e a sociedade, produzido pelo consumo repetido de uma droga e caracterizado por um desejo ou necessidade indomável de tomar a droga, por uma tendência a aumentar a dose e por dependência psíquica, e algumas vezes física, dos efeitos da droga. A legislação dos Estados Unidos especifica as drogas viciantes como o ópio e seus derivados (como morfina, codeína, heroína e Demerol), cocaína e marijuana. O ópio e seus derivados são narcóticos – deprimem a atividade do sistema nervoso central e são usados, na medicina, para aliviar dores severas; cocaína é um poderoso estimulante (sua aplicação médica, como anestésico local, não tem relação com seu efeito estimulante sobre o cérebro); marijuana é um intoxicante brando, sem valor médico. A lista oficial é naturalmente arbitrária, pois muitas outras substâncias podem ser viciantes, inclusive os barbitúricos, anfetaminas (Benzedrina) e o álcool.
[...]

Fonte: Weeks, J. R. 1977. O vício de narcóticos experimental. In: Scientific American, Psicobiologia: as bases biológicas do comportamento. RJ, LTC. Artigo originalmente publicado em 1964.

27 setembro 2012

A morte do coveiro


Carlos Schwabe (1866-1926). La mort du fossoyer. 1895.

Fonte da foto: Wikipedia.

25 setembro 2012

The plot thickens


Na carta à irmã
ele escreveu –
era sete de maio –
como via as folhas
escolhendo a direção
de se abaixarem
dançando
sob a chuva.
Fazem muito bem
em não permitir
– registrou –
um enterro cristão
aos suicidas
que só transitam
de uma morte a outra
num labirinto frio e azul.
Me abandonando
quero mesmo que
falecesse.
Se estava
tão deprimido
com o olho duro de araponga
como me contaram.
Escreveu-me dizendo
que faria um estrondo e o topo
do crânio seria
feito em mil pedaços
que se alojariam
com massa branca e cinza e sangue
nos ladrilhos da cozinha.
Estou te escrevendo
continuava a carta
da mesa onde janto,
um dia cheio de presságios
me lembrando
de como a gente olhava
as árvores
no jardim da viúva
da janela estreita
do quarto do avô
o velho sempre de chinelos
macios de couro marrom
o vento empurrando um galho
contra a batente.
Ah, Henrique, não posso
levantar a cabeça
que te vejo com rosto de morto,
as pálpebras vazias.
Tuas mãos são como plantas
que qualquer remuo
dobra
teu olhar flutua
onde olho.

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.

23 setembro 2012

A vida no mar

A. Lee McAlester

Os seres marinhos, sejam animais ou vegetais, costumam ser pouco familiares à maioria das pessoas, salvo as que moram à beira-mar. No entanto, eles são de extraordinária importância para o entendimento da história da vida, graças ao fato de que a maioria dos filos de organismos originou-se no mar. Se se observar a classificação dos organismos [...] veremos que quase todos os filos ainda hoje são encontrados no mar. Por outro lado, são também muitos os filos que ocorrem exclusivamente no mar. É provável que todas as plantas e animais pré-cambrianos, discutidos no primeiro capítulo, viveram em ambiente marinho, assim como grande parte dos organismos viventes durante os períodos cambriano e ordoviciano. Somente nos períodos siluariano e devoniano que a superfície terrestre perdeu seu aspecto desértico e inanimado, pois, foi a época na qual os animais e as plantas do mar iniciaram a sua transição para a terra firme. [...]

Os tipos de seres viventes dos mares

Os animais e plantas dos mares possuem três modos diferentes de vida. Podem flutuar passivamente na água, nadar ativamente ou viver enterrados, entre as rochas ou, ainda, na lama depositada no fundo dos mares.

Estes hábitats definem assim três grandes grupos de organismos marinhos, o plâncton (organismos flutuantes), o nécton (animais que nadam) e o bento (organismos que vivem nos fundos). Os organismos planctônicos são divididos em fitoplâncton (plantas flutuantes) e zooplâncton (animais flutuantes). Como as plantas são destituídas de movimento ativo, essa distinção é desnecessária em relação ao nécton. Os seres bentônicos, por sua vez, não recebem nomes especiais. [...]

Plâncton

Com exceção de algumas medusas flutuantes, o plâncton compõe-se de animais e plantas microscópicas. Do mesmo modo que na terra firme, toda a vida marinha depende da fotossíntese, processo realizado pelos minúsculos dinoflagelados, diatomáceas e muitas outras algas que medram nas partes mais rasas (até 80 metros de profundidade, no máximo) onde é possível penetrar a luz do sol. [...]

Nécton

São os seres que nadam ativamente, predominando os vertebrados: peixes, tartarugas, baleias, focas etc., além de muitos répteis já extintos. Entre os invertebrados, citaremos os cefalópodes, que, pela sua força e desenvolvimento cerebral chegam a competir com os vertebrados. A maior parte do nécton é constituída de animais predadores, alimentando-se tanto do plâncton como do bento ou do próprio nécton.

Bento

Entre os seres bentônicos, citaremos as algas macroscópicas, as bactérias, diatomáceas, raros fungos e um grande número de animais. As algas ocorrem nas partes rasas, iluminadas, mais comumente juntos aos rochedos. Têm grande importância como alimento e como esconderijo para um grande número de animais. [...]

Ao contrário das algas, os animais bentônicos não necessitam de luz solar, podendo alimentar-se de detritos ou restos mortos caídos de cima. Por isso, é grande a variabilidade dos seres bentônicos marinhos. [...]

Adaptações dos invertebrados bentônicos

Os invertebrados marinhos que vivem nos fundos podem se alimentar de quatro modos diferentes: dois destes são os mesmos que encontramos entre os animais terrestres: os herbívoros, que se alimentam principalmente de algas, e os carnívoros ou necrófagos, que comem outros animais vivos ou mortos. Os outros dois tipos são de grande importância no mar, mas muito raros na terra. Trata-se dos animais que sugam e filtram a água juntamente com a lama depositada no fundo da mesma, retirando dela os minúsculos organismos planctônicos e a matéria orgânica detrítica. A maior parte desses animais produz turbilhões na água do mar, por meio de delgados cirros. A corrente formada passa através de um dispositivo capaz de reter e de acumular as partículas alimentícias, freqüentemente com a ajuda de um muco pegajoso, para depois transferi-las à boca. O último processo de apanhar o alimento é análogo ao usado pela minhoca, que ingere indistintamente substâncias minerais e orgânicas. O que serve de alimento é retido pelo organismo e o restante é excretado. [...]

Fonte: McAlester, A. L. 1971 [1968]. História geológica da vida. SP, Edgar Blücher.

21 setembro 2012

I-vos, i-vos, céus nublados...


(Fala da Primavera)

I-vos, i-vos, céus nublados,
ventanias, nevoeiros!
Reverdeçam os outeiros,
vales, montanhas e prados!
Seja o frio aniquilado,
saíam os frescos vapores,
pinte-se o campo de flores,
alegre-se o semeado!

Volte já a formosura
a tudo o que foi criado,
às flores a brancura,
à terra sua verdura,
que o mau tempo lhe há roubado.
Bendito o meu poderio
que dá claridade aos céus!
Benditos os zelos meus
pelo que é meu senhorio!

O que é deus dos amores
me deu seu poder e chaves,
que mande cantar às aves
os salmos de seus amores.
E as damas sem piedade
saibam que sou o florido
mensageiro de Cupido,
e não tem minha amizade
coração desagradecido.

Fonte: Quintela, P. 2001. Obras completas, vol. 5. Lisboa, Calouste Gulbenkian. Gil Vicente (1465?-1536?) foi um dos pioneiros da literatura renascentista portuguesa.

19 setembro 2012

Ruínas

Teófilo Dias

Ó rotos coruchéus! ó velhas catedrais!
Outrora tínheis vós agulhas pensativas,
Que roçavam nos céus as nuvens fugitivas
Com o extático afã dos beijos sensuais!

Meu pensar, como vós em torres ideais,
Ergueu também visões fantásticas, altivas,
Como em belos haréns as lânguidas cativas
Dos grandes castelões, dos déspotas feudais!

Que resta hoje de vós? Que lenda aos viajores
Contais, ó torreões? – Em lúbricos amores
A elétrica tormenta um dia vos prostrou!

Tal de minhas visões a sombra peregrina
Sumindo-se me aponta – em meio da ruína
De tudo que sonhei – o Deus que me habitou!

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1878, com a dedicatória ‘A Fontoura Xavier’.

17 setembro 2012

Conversa galante


Gerard ter Borch (1617-1681). The gallant conversation. 1654-5.

Fonte da foto: Rijksmuseum. Há mais de uma versão dessa obra, também conhecida pelo título de Admoestação paterna [The paternal admonition].

15 setembro 2012

Lírica de Pardilhó


Então acordo e sinto a meu lado
o esplendor tranquilo
da amada que respira
adormecida deitada sobre o flanco
vertendo a prata dum sorriso

nas ravinas da noite

esferas cantam a alegria
é um sítio de grama rociada

e passam horas
durante as que da rua
ouvindo vozes turvas
eu ficarei teimando
na claridade a todo o preço

de que me falam aves

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1982.

13 setembro 2012

Alucinação

Dias da Costa

Dona Gertrudes abriu a guilhotina da boca e degolou o silêncio. Não fiquei admirado. Sabia que a sua língua era uma navalha. Não havia ninguém que lhe escapasse ao corte, nem existia reputação que não fosse golpeada por ela. Não me assombrei quando vi a cabeça do silêncio, separada do corpo minúsculo, rolar dos lábios de dona Gertrudes para o soalho, ali ficar batendo as pálpebras e agitando uma barbicha pontuda de sátiro.

Eu já não me espantava de nada. Na mesa, quando via os diabinhos andando por entre os pratos, ou quando, na água do meu copo, via boiar cabeças esquisitas, de dentes de lobo e contrações faciais mefistofélicas, contentava-me com sorrir. Pelo menos, eu julgava que sorria apenas. No entanto, todos olhavam para mim, assombrados. Minha mãe, muito pálida, ficava com o garfo no ar e uma tristeza ansiosa nos olhos. Meu pai, sem a sua rispidez antiga, perguntava-me se eu estava sentido alguma coisa. Minha tia rezava com o seu ar estagnado de água morta. Eu continuava a sorrir e levantava-me da mesa para não beber aquela água cheia de cabeças.

Dona Gertrudes continuou a falar. Minha mãe, por delicadeza, ouvia a enxurrada de maledicências que lhe saía da boca.

Pois fora um caso que espantara todo mundo. Constança... Que sonsa! Se fosse por necessidade... Mas com um marido daqueles, que lhe dava de um tudo... Somente porque o tipo se dizia poeta e andava recitando por toda parte, revirando os olhos e arrastando a voz. Aquilo chegava a ser indecente. Também, vamos e venhamos, o marido não estava pagando por inocente. Gostava de dar as suas unhadas e não deixava passar camarão pela malha...

– Imagine a senhora que uma vez tirou-se dos seus cuidados e veio me dizer uma pilhéria...

Dei uma gargalhada tão grande que dona Gertrudes parou, assustada. Eu vira dona Gertrudes nua, magra, cheia de ossos, peluda, de lunetas, o corpo cheio de diabinhos negros, convidando o sr. Gomes, marido de dona Constança, também despido, careca, apoplético, dentes podres à mostra, batendo na pança enorme palmadinhas de gozo, para dançar.

Minha mãe empalideceu e minha tia apertou nos dedos as contas do rosário preto. Dona Gertrudes fingiu-se alheada. Eu observava tudo e compreendia tudo. A palidez de minha mãe, a reza de minha tia, o alheamento de dona Gertrudes, julgavam-me doido. Eu, porém, sabia que estava completamente lúcido. Apenas via o que os outros não podiam ver. De repente, veio-me uma idéia. Se eu me fingisse de louco? Os diabinhos, que estavam agora em cima do piano, bateram palmas silenciosas, aprovando. Levantei-me e fui até a janela. No céu claro a lua sorria um sorriso canalha.

– Minha mãe, a lua está grávida. E sabe de quem é o filho? É meu...

Batia no peito, orgulhoso.

– A senhora vai ser avó...

Minha mãe começou a chorar. Decididamente, ela não compreendia a honra que eu lhe dava. Fiquei aborrecido.

– Vou passear.

Na rua, apalpei a coronha da pistola automática.

– Sete tiros seguros...

Os transeuntes voltavam-se para mim, olhando-me curiosos.

– Imbecis!

Fui andando entre a multidão. Olhei o relógio. Um diabinho fugiu do mostrador e entrou-me pela manga do paletó. Comecei a me sentir irritado com aquela perseguição.

– Ah! Vocês querem me aborrecer? Eu tenho uma pistola automática!

Sete tiros!

Automóveis passavam rápidos. Dentro, cadáveres conversavam. Sim, eram cadáveres. Eu sabia que o governador dera licença, naquele dia, para os defuntos passearem de automóvel. Meu avô passou numa limusine negra. Aproveitava a licença do governador. Coitado, ele bem o merecia! Dez anos enterrado ali no campo-santo... Irra!

Um garoto passou vendendo jornais. Chamei-o. Quando ele chegou perto de mim, fui-me embora sem comprar nenhum jornal. Sentia um peso enorme na cabeça. Compreendi que o diabinho que entrara pela manga do meu paletó penetrara no meu cérebro. Isso não era pilhéria. Fiquei irritado.

– Saia daí!

O homem gordo que olhava a vitrine fitou-me espantado e retirou-se cauteloso.

A cabeça começava a doer horrivelmente.

– Você por aqui?

Era Mariana. Apertei-lhe a mão. Ela sorria, feliz.

– Venha comigo até em casa.

No portão, ficamos parados, conversando. Mariana queixou-se por eu não ter aparecido na véspera. Estava zangado? Por quê? Não sei por que aquela pergunta irritou-me. A cabeça doía-me. Marteladas fortes se repetiam dentro do meu crânio. Era o diabinho. Também, se eu o pegasse de jeito...

– Por quê?

Apalpei a pistola no bolso. De repente, vi o diabinho nos lábios de Mariana. Fazia trejeitos de símio, agitava a cauda e ironicamente perguntava:

– Por quê?

Senti uma cólera enorme. Puxei a pistola e disparei duas vezes. Mariana caiu sem um grito.

No céu claro a lua sorria um sorriso canalha.

Fonte: Costa, F. M., org. 2009. Os melhores contos brasileiros de todos os tempos, 3ª edição. RJ, Ediouro.

12 setembro 2012

Setenta e um meses no ar

F. Ponce de León

Nesta quarta-feira, 12/8, o Poesia contra a guerra completa cinco anos e onze meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 181.108 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Setenta meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Aldo Capasso, Alfred Tennyson, C. P. Snow, Christopher Hogwood, Ishmael Beah, João Accioli, Maurice Merleau-Ponty e Robert Kurson. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Alfred Stevens, Gustave Boulanger e Henri-Lucien Doucet.

10 setembro 2012

Leito de folhas verdes


Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!

A flor que desabrocha ao romper d’alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.

Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram.

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!

Fonte: Dias, G. 2003. I-Juca-Pirama. Os Timbiras. Outros poemas. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1851.

08 setembro 2012

A parisiense japonesa


Alfred Stevens (1823-1906). La parisienne japonaise. 1872.

Fonte da foto: Wikipedia.

06 setembro 2012

Louvação de Daniel


Como és belo, ó Daniel
dos bíblicos arcanos
aos vagares do pouso
de Congonhas do Campo.

Sob o céu constelado,
pela chuva batido,
prisioneiro da pedra
como dantes cativo,
todavia talhado
para sobrançarias.

Príncipe em terra estranha,
como outrora imperaste
sobre reis, por teu ânimo
e donaire de porte,
pela divina graça
permaneces magnífico
para as eternidades.

Mais que aos outros profetas
o Aleijadinho amou-te,
recompondo-te a essência
na harmonia do todo.
Dentre os blocos de pedra
pelo rolar dos tempos
receberás o orvalho
da estrela. Sol e azul
te saudarão primeiro.
Pássaros da distância
com preferência clara
pousarão no teu ombro.

Leão que outrora domaste
(mas com que destemor
numa estreita caverna!)
com submissa volúpia
bebe-te hoje os olhares
aos reflexos da lua.

Pensativa cabeça
sem orgulho, que sábia
posição escolheste
para ser e não ser!
Decifrador de enigmas
pelos desígnios do alto,
que em ti mesmo encontravas
as raízes da vida.

Não foi em vão, Daniel,
que salvaste Susana,
cavalheiro perfeito
pelas dobras do manto.

Giro em torno de ti,
Daniel, desapareço.
Prenunciando o Messias
continuas de pedra
pelas noites e os dias
passageiros e eternos.

Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 1949.

04 setembro 2012

Pássaros ao sol

Aldo Capasso

Passam revoando, como flores, sombras
Indizíveis. Um astro amante faz
Tão loura a minha mão! Oh sangue rico
Como o mel! Eis de súbito uma delas
Em direção à terra, a uma menina,
Dobra com doce curva... Um improviso
Grito, e infantil, ergue-se não sei donde,
E a alma convida a tranqüila frescura.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.

02 setembro 2012

As quatro estações

Christopher Hogwood

Em vista do entusiasmo deste século por Vivaldi em geral e [por] As quatro estações em particular, é salutar encontrar uma avaliação um tanto menos parcial desta obra por parte de um historiador do século dezoito, Sir John Hawkins. Ele faz uma ampla referência a Vivaldi em sua História, observando sua popularidade, mas [duvidando] de sua seriedade – um sentimento comum entre os ingleses, que haviam sido levados a respeitar a sobriedade da música de Corelli.
[...]

Contra a dedução de Hawkins, naturalmente, temos o próprio título de Vivaldi: A competição entre a harmonia e a invenção – isto é, entre o lado racional e o imaginoso da música.

Os dois lados foram separados nos títulos de suas séries anteriores de concertos de cordas – L’estro armonico, de 1711, enfatizando a existência de contenções, La stravaganza, c. 1714, demonstrando o poder da inspiração de derrubar as regras. Il cimento, contendo doze concertos, apareceu no final de 1725, publicado em Amsterdã por Le Cène, sucessor de Roger, que havia editado os concertos anteriores de Vivaldi. Na dedicatória a Wenzel von Morzin (primo do aristocrata boêmio que viria a ser o primeiro patrono de Haydn em Lukavec), Vivaldi se descreve como ‘Maestro in Italia’ do Conde, significando presumivelmente que se fizera responsável pelo fornecimento da ‘virtuosissima orchestra’ de exemplares dos últimos concertos. Pode-se certamente deduzir que Morzin (ou Marzin, como escrevia Vivaldi) ouvira um pouco de Opus VIII antes de ir à impressão, desde que Vivaldi lembra-o de que ele conhecera e aprovara Le quattro stagioni ‘da tanto tempo’.
[...]

Para explicar e justificar seus vôos mais bizarros de inventione em Le quattro stagioni, Vivaldi acrescentou um ‘sonetto dimonstrativo’ a cada estação como um guia programático. Um elaborado sistema de letras-chave impressas sobre o texto musical, [junto com] extratos dos sonetos um tanto desajeitados (obra do próprio Vivaldi?), possibilita-nos identificar cada nuance de meteorologia, de ornitologia, ebriedade e hibernação. As partes chegam a conter algumas explicações não encontradas nos sonetos: o latido do cão pastor, por exemplo, no movimento lento de La primavera, é identificado só na parte de viola (‘Il cane che grida’). Para conveniência do ouvinte moderno, os quatro sonetos estão aqui incluídos, juntamente com durações de tempo calculadas do começo de cada concerto para localizar cada passagem como Vivaldi pretendeu.

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Vivaldi: Le quattro stagioni (1983), com a ‘The Academy of Ancient Music’, sob a regência de Christopher Hogwood.

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