25 agosto 2012

Era uma noite perfeitamente comum

C. P. Snow

[Introdução]
Era uma noite perfeitamente comum no jantar solene do Christ’s, exceto pelo fato de que Hardy era um dos convidados. Acabava de voltar a Cambridge, como professor da cadeira Sadler, e eu ficara sabendo alguma coisa a seu respeito através de jovens matemáticos de Cambridge. Estavam deliciados em tê-lo de volta: era um matemático de verdade, diziam, não era como os Diracs e Bohrs de quem os físicos estavam sempre falando: era o mais puro dos puros. Também era heterodoxo, excêntrico, radical, pronto a falar sobre qualquer coisa. Isso foi em 1931, e ainda não se usava a expressão, mas em tempos mais recentes diriam que, de um modo indefinível, ele tinha a qualidade do astro.

Assim, do meu lugar na mesa, a distância, continuei a estudá-lo. Ele tinha então uns cinqüenta e poucos anos: o cabelo já estava grisalho, coroando uma pele tão profundamente queimada pelo sol que adquirira uma espécie de bronzeado índio. Tinha o rosto bonito – maçãs salientes, nariz fino, espiritual e austero, mas capaz de dissolver-se nas convulsões de um contentamento como que de menino. Tinha olhos de um castanho opaco, brilhantes como olhos de pássaros – um tipo de olho que não é incomum entre os que têm o dom do pensamento conceitual. Cambridge, naquela época, estava repleta de rostos incomuns e distintos – mas, mesmo assim, pensei naquela noite que Hardy se destacava.
[...]

Conforme tive a oportunidade de perceber mais tarde, Hardy não confiava em intuições ou impressões, suas ou dos outros. A única maneira de avaliar o conhecimento de alguém, na opinião de Hardy, era examiná-lo. Isso valia para matemática, literatura, filosofia, política, qualquer coisa que se possa imaginar. Se o homem blefava e depois sucumbia às perguntas, azar dele. Naquela mente brilhante e concentrada, as coisas mais importantes vinham em primeiro lugar.
[...]

No início do verão de 1947, eu estava tomando o café da manhã quando o telefone tocou. Era a irmã de Hardy. Ele estava gravemente enfermo; será que eu podia ir a Cambridge imediatamente? Podia ir ao Trinity primeiro? Na ocasião, não captei o significado do segundo pedido. Mas obedeci e, na portaria, encontrei um recado dela: eu devia ir aos aposentos de Donald Robertson, pois ele estava esperando por mim.
[...]

Eu gostava de Donald Robertson, mas o encontrava apenas em festas e nos jantares solenes do Trinity. Essa foi a primeira ocasião em que conservamos intimamente. Ele disse, com delicada firmeza, que eu devia visitar Hardy tantas vezes quanto pudesse; seria difícil, mas era uma obrigação; provavelmente não seria por muito tempo. Estávamos ambos arrasados. Despedimo-nos e nunca mais o vi.
[...]

Depois disso, fui a Cambridge pelo menos uma vez por semana. Eu temia cada visita, mas, logo de início, ele disse que aguardava ansiosamente o dia de me ver. Falava um pouco sobre a morte, quase sempre que eu o via. Ele queria morrer, não tinha medo: o que havia a temer no nada? Seu severo estoicismo intelectual tinha voltado. Não tentaria matar-se novamente. Não era bom nisso. Estava preparado para esperar. Com uma incoerência que poderia tê-lo vexado – pois ele, como a maioria dos que com ele conviviam, acreditava na racionalidade a um ponto que me parecia irracional –, mostrava uma intensa curiosidade hipocondríaca pelos próprios sintomas. Constantemente estudava o edema dos tornozelos: estava maior ou menor naquele dia?
[...]

Fonte: Hardy, G. H. 2000 [1940]. Em defesa de um matemático. SP, Martins Fontes. O texto acima, de C. [Charles] P. [Percy] Snow, foi acrescentado à edição de 1964 do livro de G. [Godfrey] H. [Harold] Hardy.

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