23 julho 2012

Trânsito

Lucia Fonseca

Vim para morrer. Trouxe comigo
os panos de linho claro. Na mão fechada, um lenço
e o gesto do recém-nascido.
Ao pescoço,
sete voltas de cordão. Medalha.

Quem disse que trouxe nos olhos abertos
lendas de antigas infâncias?
Quem disse que, das mãos, escapou-me a ânfora
lançando ao chão, entre cacos, o vinho?
Vim para morrer tão simplesmente
como caem as folhas e se apagam as cigarras
ao final de um ciclo.
Decerto o que tinha que cumprir, cumpri.
Embora esperasse tão mais.
(Somos sempre uns príncipes em pensamento.)

Ainda as vísceras se esforçarão em seu inocente exercício.
Ainda o pulso latejará por obrigação de mais um dia.
O Sol pousará no horizonte. Pela janela ainda verei a Lua
nascer dourada do mar.
Então partirei, madrugada.

Deixo – infelizmente –
o quarto desarrumado,
a cama desfeita,
os papéis em desordem.

Fonte: poema publicado no livro Cantares (2007, Editora da Palavra) e republicado aqui com o devido consentimento da autora, a quem agradeço pela cortesia.

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