30 dezembro 2011

O Beija-flor

Silva Alvarenga

Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.

Neste bosque alegre e rindo
Sou amante afortunado,
E desejo ser mudado
No mais lindo Beija-flor.

Todo o corpo num instante
Se atenua, exala e perde:
É já de oiro, prata e verde
A brilhante e nova cor.

Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.

Vejo as penas e a figura,
Provo as asas, dando giros;
Acompanham-me os suspiros,
E a ternura do Pastor.

E num vôo feliz ave
Chego intrépido até onde
Riso e pérolas esconde
O suave e puro Amor.

Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.

Toco o néctar precioso,
Que a mortais não se permite;
É o insulto sem limite,
Mas ditoso o meu ardor;

Já me chamas atrevido,
Já me prendes no regaço;
Não me assusta o terno laço,
É fingido o meu temor.

Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.

Se disfarças os meus erros,
E me soltas por piedade;
Não estimo a liberdade,
Busco os ferros por favor.

Não me julgues inocente,
Nem abrandes meu castigo;
Que sou bárbaro inimigo,
Insolente e roubador.

Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.

Fonte: Cereja, W. R. & Magalhães, T. C. 2005. Português: Linguagens, 5ª edição. SP, Atual. O poema inteiro, intitulado “Glaura”, é composto de 117 partes e foi publicado em livro em 1799; o trecho acima corresponde à sétima parte.

28 dezembro 2011

Cigarras...

Bernardino Vieira

Lindas cigarras! Loucas raparigas
Que pelo bosque andais noivando...
Cigarras sois, das árvores antigas
Almas sonoras, loucas, delirando!...

Chegam cigarras céleres, cantando
Nas frondejantes árvores amigas.
Gemem saudades!... Morrem soluçando
As mais tristes de todas as cantigas!...

Eu tenho n’alma bandos de cigarras
Estrídulas, canoras e bizarras,
Que dia e noite vivem a cantar!...

As Ilusões! Cigarras cantadeiras!...
D’alma me fogem, céleres, ligeiras,
E, pelo espaço, ficam a chorar!...

Fonte: Lenko, K. & Papavero, N. 1979. Insetos no folclore. SP, Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas. Poema publicado em livro em 1920.

26 dezembro 2011

A estrutura das revoluções científicas

Thomas S. Kuhn

5.
A ciência normal, atividade que consiste em solucionar quebra-cabeças, é um empreendimento altamente cumulativo, extremamente bem-sucedido no que toca ao seu objetivo, a ampliação contínua do alcance e da precisão do conhecimento científico. Em todos esses aspectos, ela se adequa com grande precisão à imagem habitual do trabalho científico. Contudo, falta aqui um produto comum do empreendimento científico. A ciência normal não se propõe descobrir novidades no terreno dos fatos ou da teoria; quando é bem-sucedida, não as encontra. Entretanto, fenômenos novos e insuspeitados são periodicamente descobertos pela pesquisa científica; cientistas têm constantemente inventado teorias radicalmente novas. O exame histórico nos sugere que o empreendimento científico desenvolveu uma técnica particularmente eficiente na produção de surpresas dessa natureza. Se queremos conciliar essa característica da ciência normal com o que afirmamos anteriormente, é preciso que a pesquisa orientada por um paradigma seja um meio particularmente eficaz de induzir a mudanças nesses mesmo paradigmas que a orientam. Esse é o papel das novidades fundamentais relativas a fatos e teorias. Produzidos inadvertidamente por um jogo realizado segundo um conjunto de regras, sua assimilação requer a elaboração de um novo conjunto. Depois que elas se incorporaram à ciência, o empreendimento científico nunca mais é o mesmo – ao menos para os especialistas cujo campo de estudo é afetado por essas novidades.
[...]

Fonte: Kuhn, T. S. 1982 [1962]. A estrutura das revoluções científicas. SP, Perspectiva.

24 dezembro 2011

Madona com o Menino


Jacopo del Casentino [di Landino] (1297?-1350?). Madonna col Bambino. Primeira metade do século 14.

Fonte da foto: Wikipedia.

22 dezembro 2011

Não era a Morte, pois de pé me erguia


Não era a Morte, pois de pé me erguia,
E os que morrem – desabam –
Não era a Noite – em sua Língua os Sinos
“Meio-dia” – falavam –

Não era o Gelo, pois na minha Carne
Rastejava – o Siroco –
E se a capela os pétreos pés me tinham
Frios – não era o Fogo –

Mas me sabiam a essas coisas todas
Os Vultos que eu já vira
Postos em ordem para algum Enterro
Que o meu me parecia –

Qual se aparada a minha vida fora
Para caber num quadro,
Sem poder respirar, perdida a chave,
E a Meia-noite ao lado –

Quando tudo que pulsa – agora extinto –
E o Espaço a olhar em volta –
O Gelo horrendo na manhã de Outono
Cobrindo a Terra morta –

E mais o Caos – irrefreável – frio –
Sem Mudança ou Roteiro –
Sem Notícia do Mundo que dê causa
A esse Desespero

Fonte: Dickinson, E. 2006. Alguns poemas. SP, Iluminuras. Poema publicado em livro em 1924.

21 dezembro 2011

A escola como organização complexa

Maurício Tragtenberg

A ocidentalização da cultura caminha a par com o desenvolvimento urbano, comercial e a necessidade de ‘letrados’ para darem andamento burocrático às estruturas de poder formadas em torno da Igreja e do Estado Moderno.

De um lado, o intelectual é domesticado no contexto das universidades ligadas à Santa Sé, de outro, com a emergência do jesuitismo, seu aprendizado passará pelo processo de organização e planejamento de estudos num espírito de obediência – é o sentido da Ratio studiorum de 1586.

No século 19, a expansão da técnica e a ampliação da divisão do trabalho, com o desenvolvimento do capitalismo, levam à necessidade da universalização do saber ler, escrever e contar. A educação já não constitui ocupação ociosa e sim uma fábrica de homens utilizáveis e adaptáveis.

Hoje em dia a preocupação maior da educação consiste em formar indivíduos cada vez mais adaptados ao seu local de trabalho, capacitados, porém, a modificar seu comportamento em função das mutações sociais. Não interessa, pelo menos nos países industrialmente desenvolvidos, operários embrutecidos, mas seres conscientes de sua responsabilidade na empresa e perante a sociedade global. Para tal constitui um sistema de ensino que se apresenta com finalidades definidas e expressas.
[...]

Fonte: Tragtenberg, M. 1978. A escola como organização complexa. In: W. E. Garcia, org. Educação brasileira contemporânea: organização e funcionamento. SP, McGraw-Hill.

19 dezembro 2011

Cetáceo


Fuma. É cobre o zênite. E, chagosos do flanco,
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um largo vôo branco.

Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunida a pele atijolada.

Tine em cobre o zênite e o vento arqueja e o oceano
Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.

E na verde ironia ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d’água ou do sol vermelho.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial.

17 dezembro 2011

A barca dos amantes

Sérgio Godinho

Ah! Quanto eu queria navegar
Pra sempre a barca dos amantes
Onde o que eu sei deixei de ser
Onde o que eu vou não ia dantes

Ah! Quanto eu queria conseguir
Trazer a barca à madrugada
E desfraldar o pano branco
Na que for terra, a mais amada

E que em toda parte o seu corpo
Seja o meu porta-estandarte
Plantado no seu mais fundo
Posso agitar-me no vento
E mostrar a cor ao mundo

Ah! Quanto eu queria navegar
Pra sempre a barca dos amantes
Onde o que eu vi me fez vogar
De rumos meus a cais errantes

Ah! Quanto eu queria me espraiar
Fazer a trança à calmaria
Avistar terra e não saber
Se ainda o é quando for dia

Fonte: encarte que acompanha o álbum A barca dos amantes (1986), de Milton Nascimento.

15 dezembro 2011

Gota de água

Homero Icaza Sánchez

Gravei tua figura
Em uma gota de água
Lancei a gota de água
Num pequenino arroio
O arroio foi rolando
E perdeu-se num rio
O rio entrou no mar
Depois te fui buscar
E te achei dividida
Teus cabelos ficaram
Numa curva do rio
Teus braços chamavam
Feitos ramos de uma árvore
As pernas completaram
Um corpo de sereia
Que ansiava ser mulher
De teu tronco nasceram
Algas e caracóis
Achei teus olhos garços
Em uma madrepérola
Teu vário coração
Um peixezinho de ouro
Alimentou-se dele
(Hoje no mar é rei
Por tão feliz façanha)

Como estou sem teus beijos
– A um tempo mel e sal –
Bebo a água do rio
Bebo a água do mar.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema publicado em livro em 1956.

13 dezembro 2011

Chapéu de praia


Robert Henri (1865-1929). The beach hat. 1914.

Fonte da foto: Wikipedia.

12 dezembro 2011

Sessenta e dois meses no ar

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/12, o Poesia contra a guerra completa cinco anos e dois meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 155.438 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Sessenta e um meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Constance Briscoe, Heinrich Heine, Jean Richepin, Kathleen Raine, Matilda Betham-Edwards, Paul Goodman, Renato Russo, René Descartes, Rupert Sheldrake, Sidney Siegel e Stephen H. Schneider. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Cecilia Beaux, Gustav Wentzel e Thomas Eakins.

11 dezembro 2011

A armadilha universal

Paul Goodman

Uma conferência de especialistas em desistência das escolas discutirá os antecedentes da pobreza, a privação cultural, o preconceito racial, problemas familiares e emocionais, mudança de bairros, a mobilidade urbana. Ela pesquisará expedientes engenhosos para neutralizar essas condições, embora não procure remediá-las – isso não é da sua alçada. Será sugerida a propaganda – por exemplo, sem escolarização não há trabalho – para fazer com que os jovens voltem às escolas. É axiomático que eles devam estar nas escolas.

Decorrido um ano, verifica-se que é necessário realizar outra conferência para enfrentar o fato alarmante de que mais do que 75% dos jovens que haviam sido persuadidos a voltar, haviam novamente abandonado as escolas. Eles teimam em falhar; não estão suficientemente motivados. Quais as mudanças curriculares que deverão ter lugar? Como podem os professores aprender o estilo de vida dos subprivilegiados?

Curiosamente abafada nessas conferências está a questão que coloca a responsabilidade disso de uma outra maneira: de onde são essas desistências? Será a escolaridade realmente boa para eles, ou para qualquer pessoa? Desde que, para muitos, existem tais dificuldades com a atual estruturação das coisas, não poderiam outras disposições serem inventadas? Ou falando claramente, desde que a escolaridade se compromete a ser compulsória, não deveria continuamente rever a sua pretensão de ser útil? Será ela o único meio que temos de educar? Não é pouco provável que qualquer tipo único de instituição social pudesse acomodar quase todos os jovens de até 16 anos e até mais velhos do que isso? (Está previsto que em 1970, 50% freqüentarão faculdades.)
[...]

Fonte: Marin, P ; Stanley, V. & Marin, K., orgs. 1984 [1975]. Os limites da educação escolar. RJ, Francisco Alves. Texto originalmente publicado em 1964.

09 dezembro 2011

Análise

Jean Richepin

Ó lágrimas, em que se vão nossos rancores,
Qual proceloso céu, fuliginoso, troante,
Elétrico, e que esvai-se em chuva num instante;
Ó lágrimas, ó mais suave dos licores,

Quando vos bebe o amante a beijos vencedores,
Qual bebe o sol, passivo o chuveiro, anelante
Pelas nuvens que enxuga, o arco-íris brilhante;
Ó lágrimas, que assim caís de nossas dores,

Como o orvalho da flor cai do quebrado cálice;
Vauquelin e Fourcroy fizeram-vos a análise,
Ó lágrimas, e os dois, no crisol, afinal,

Encontraram, por junto, o que aqui vai escrito:
Água, sal, soda, muco e fosfato de cal.
Ó lágrimas, ideal rocio d’alma!... Bonito!

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema original publicado em livro em 1884.

07 dezembro 2011

Feia

Constance Briscoe

1.
Vou escrever a minha história. Até este momento, tenho sido uma pessoa muito reservada, portanto, esta é a primeira vez que minha história está sendo relatada. É difícil recordar a ordem das coisas. Meu pai, George, e minha irmã Pauline poderiam ajudar nisso. Seria mais fácil se eu tivesse os meus diários. Mantive diários desde que aprendi a escrever. Mas minha mãe os roubou de mim.

Vou começar pelo meu nome. Constance. Este é o nome que está na minha certidão de nascimento. Só fui descobrir esse fato quando tinha dezoito anos. Antes disso, achava que meu nome era Clare. Minha mãe me chamava de Clear, ou seja, Clara, porque dizia que eu era transparente e por isso conseguia ver todos os meus segredos. Quando eu não estava na lista negra dela (o que não acontecia com muita frequência) era Clearie, Clarinha. Minhas irmãs adotaram Clare. Ainda me chamam assim, Meus boletins escolares se referiam a mim como Clare. Quando eu trabalhava em asilos era conhecida como enfermeira Clare. Em minha carteira de motorista está escrito Clare. Então é assim que você vai me conhecer nesta história.
[...]

Fonte: Bricoe, C. 2009 [2006]. Feia. RJ, Bertrand.

05 dezembro 2011

Homem com gato


Cecilia Beaux (1855-1942). Man with the cat (Henry Sturgis Drinker). 1898.

Fonte da foto: Wikipedia.

03 dezembro 2011

Surdina


No ar sossegado um sino canta,
Um sino canta no ar sombrio...
Pálida, Vênus se levanta...
Que frio!

Um sino canta. O campanário
Longe, entre névoas, aparece...
Sino, que cantas solitário,
Que quer dizer a tua prece?

Que frio! embuçam-se as colinas;
Chora, correndo, a água do rio;
E o céu se cobre de neblinas...
Que frio!

Ninguém... A estrada, ampla e silente,
Sem caminhantes, adormece...
Sino, que cantas docemente
Que quer dizer a tua prece?

Que medo pânico me aperta
O coração triste e vazio!
Que esperas mais, alma deserta?
Que frio!

Já tanto amei! já sofri tanto!
Olhos, por que inda estais molhados?
Por que é que choro, a ouvir-te o canto,
Sino que dobras a finados?

Trevas, caí! que o dia é morto!
Morre também, sonho erradio!
– A morte é o último conforto...
Que frio!

Pobres amores, sem destino,
Soltos ao vento, e dizimados!
Inda vos choro... E, como um sino,
Meu coração dobra a finados.

E com que mágoa o sino canta,
No ar sossegado, no ar sombrio!
– Pálida, Vênus se levanta...
Que frio!

Fonte: Bilac, O. 1985. Poesias. BH, Itatiaia. Poema publicado em livro em 1888.

01 dezembro 2011

Discurso sobre o método

René Descartes

2.
[...]
E como o excesso de leis dá desculpas, muitas vezes, ao vício, de forma que um Estado é muito melhor regido quando, possuindo apenas muito poucas, elas são rigorosamente observadas, acreditei, por isso, que, em vez dos inúmeros preceitos de que a lógica se compõe, ser-me-iam suficientes os quatro seguintes, logo que tomasse a firme e constante resolução de não deixar de observá-los nenhuma vez.

O primeiro consistia em jamais aceitar como verdadeira coisa alguma que eu não conhecesse à evidência como tal, quer dizer, em evitar, cuidadosamente, a precipitação e a prevenção, incluindo apenas nos meus juízos aquilo que se mostrasse de modo tão claro e distinto a meu espírito que não subsistisse dúvida alguma.

O segundo consistia em dividir cada dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las.

O terceiro, pôr ordem em meus pensamentos, começando pelos assuntos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para atingir, paulatinamente, gradativamente, o conhecimento dos mais complexos, e supondo ainda uma ordem entre os que não se precedem normalmente uns aos outros.

E o último, fazer, para cada caso, enumerações tão exatas e revisões tão gerais que estivesse certo de não ter esquecido nada.
[...]

Fonte: Descartes, R. s/d [1637]. Discurso sobre o método. SP, Hemus.

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