23 julho 2011

Elegia, aproveitando Bach

Fernando Assis Pacheco

Este manso Bach no piano
lembra-me o meu amigo Armindo Bouceiro
morto num estoiro de automóvel
quando corria para o cinema em Loulé.

Corria, sem o saber, para a morte inimiga,
entrava apressado na neblina cega
com as mãos poisadas sobre o volante,
o cigarro entre os lábios, meio ardido.

Calcava a fundo o acelerador
espreitando aqui e ali as curvas mais difíceis,
erguendo pó, sorrindo nas ultrapassagens
como quem galopa à beira do mar.

Numa viragem deixa o carro ir
de lado a lado na estrada, sem governo,
era o dardo da morte assinalando
o meu amigo Armindo Bouceiro.

Malmequeres entre a erva, rosas silvestres
crescem agora de seus dedos finos.
Ninguém o espera em casa. E a garganta
aperta-se com tão branca ausência.

Os meses passam, a memória esquece,
enchem-se os versos de meses e olvido.
Nada é igual ao que foi antes, quer-se
em cada hora o mundo agreste e novo.

Mas hoje ouvindo minha irmã tocar
reparo como são frias e excessivas,
como são desapiedadas certas mortes
(um amigo desfeito no empedrado),

e como endurecemos de irmos vendo
morrer esses amigos indefesos
– enquanto Bach nos fala de outras coisas,
do Abril, das estrelas, da sageza.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1963.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker