06 junho 2011

Cobra-de-duas-cabeças

Eurico Santos

(Anfisbenídeos) – Resumindo o aspecto geral da família, diremos que todos apresentam corpo longo, cilíndrico e desprovido de pés.

Basta este exterior para lhe dar a feição de uma cobra, mas cuja grossura é a mesma de um extremo ao outro.

Vem daí a denominação de cobra-de-duas-cabeças que lhe dá o povo, não atinando com o extremo caudal do singular bicho.

O corpo é revestido de pele resistente, sem escamas, ou melhor com vestígios delas, mas todo quadriculada porque sobre linhas longitudinais finas há sulcos, verdadeiros anéis, que se encadeiam no sentido transverso do corpo.

Essa reticulação serve, logo à primeira vista, para diferenciar o lacertílio, de certo anfíbio, de aspecto algo semelhante, ambos confundidos pelo povo.

Embora a cauda e cabeça se confundam, em superficial observação, elas se podem distinguir, logo que nos detivermos a examiná-las.

Os olhos são dois pequenos e apagados sinais, não mais notáveis que o ponto dum i, recobertos de tênue película.

Ninguém pode dizer se tais olhos atrofiados, quase vestigiais, ainda conservam a faculdade de ver, se é que algum dia a tiveram como se crê.

Demais para que precisa de olhos um animal que vive em pleno reino das trevas, nas galerias que fura através do solo?

Se por acaso logramos apanhar um destes seres e o expormos à luz, compreendemos o mal-estar que sente, contorcendo-se, aflito evidentemente, para se meter de novo no ambiente em que de ordinário vive. Possui a língua bífida e são ovíparos.

São seres úteis e inocentes para o homem e, entretanto, já em 1576 o cronista Pero de Magalhães Gandavo teria recolhido da vox populi a notícia que registrou ao dizer: “Outras há (referindo-se a cobras) na terra que lhe chamam ibijara, têm duas bocas, uma na cabeça e outra no rabo, mordem com ambas; esta cobra é branca e mui curta, o mais do tempo está debaixo da terra, é peçonhentíssima sobre todas; quem desta for mordido não terá vida muitas horas e assim qualquer destas outras que morder alguma pessoa o mais que dura são vinte e quatro horas”.

Há aqui uma tríplice inverdade, pois a ibijara não é cobra, e sim um lagarto, não possui veneno de espécie alguma, e só tem uma cabeça e essa com olhos atrofiados.

É, entretanto, sabido que morde e de uma forma perigosa, porque como tem fortes mandíbulas agarra como uma torquez e, torcendo o corpo, arranca o pedaço que agarrou.

Desejosos de cercar o mísero lacertílio com o halo de histórias lendárias e para justificar a presença das duas cabeças, dizem que o bicharoco anda seis meses numa direção e seis meses noutra. Enquanto uma cabeça dá tratos ao miolo a outra está gozando férias.

Mas o maravilhoso do pseudo bicéfalo não pára por aqui, vai mais longe.

Há quem afirme que se cortando ao meio a ibijara e jogando os dois pedaços para lugares diferentes, eles se procuram mutuamente e se juntam continuando tudo como dantes.
[...]

Fontes: Santos, E. 1981. Anfíbios e répteis do Brasil 3ª edição. BH, Itatiaia.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker