15 abril 2011

Cresci sob uma cerejeira num recanto do quintal

José Jorge Letria

Cresci sob uma cerejeira num recanto do quintal
e as fogueiras que ateei foram as medrosas fogueiras
de quem teme a chama e o fulgor da chama, de quem receia o lume
e a cinza, que vem depois do lume. Acocorei-me à espera
que alguém viesse libertar-me, que eu estava cativo
dos mistérios da seiva e as minhas pernas eram raízes
e os meus braços ramos entrelaçados noutros ramos.
Foi ao crepúsculo que li a minha sina numa caixa
arrecadada entre folhas e frutos: seria tudo
o que quisesse, menos ditador de leis ou fazedor de pontes,
que a única e arqueada ponte que vai de mim à felicidade
ruiu arrastada pelo vento, minada pela doença da pedra.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1991.

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