27 setembro 2010

Primeiras lamentações

Vergílio Alberto Vieira

1.
Cegam de todo, a meu ver:
este assombrado rio a que o olhar, de céu a céu,
regressa com a luz; Memphis
a que entre muros, branca, já foi cidade
ao Sul; e o pó dos cardos.
Que sabe o Mundo de nós para fingir
que é outro o dia em que essa cavada face ajusta
ao medo o rumo das paisagens?

2.
Por céus de abismo
cingia então ao nome essas visões,
que o fogo estéril da voz,
apressando a hera,
abandonava ao peso dos umbrais.
Da incandescência do mirto
não falam: nem a noite,
nem a língua que se cala.

3.
Estamos em Tebas,
à chuva do passado, e como dois exércitos de sombra,
frente a frente em linha para a morte.
O golpe de vento no abrigo
e a espera impaciente do cavalo no lancil
acordam frisos de espada.
Os mortos escutam a terra:
de que estão eles afinal assim tão certos?

4.
No estrangulado sono do meio-dia
ela é ainda a que sofre, vagueia morta pela casa,
não vê ninguém.
Com o torpor da neve, à fronte atrai
a escarpa fria.
Nas tempestades do sangue, onde já não vence
o corpo já vencido, bate agora
sem pressa o coração.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1999.


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