10 setembro 2010

As mentalidades: uma história ambígua

Jacques Le Goff

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O nível da história das mentalidades é aquele do quotidiano e do automático, é o que escapa aos sujeitos particulares da história, porque revelador do conteúdo impessoal de seu pensamento, é o que César e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês de seus domínios, Cristovão Colombo e o marinheiro de suas caravelas têm em comum. A história das mentalidades é para a história das idéias o que a história da cultura material é para a história econômica. A reação dos homens do século 14 face à peste, castigo divino, é alimentada pela lição secular e inconsciente dos pensadores cristãos, de Santo Agostinho a São Tomás de Aquino; explica-se pelo sistema da equação doença = pecado aperfeiçoado pelos clérigos da alta Idade Média, porém negligencia todas as articulações lógicas, todas as sutilezas do raciocínio para não olhar senão a forma grosseira da idéia. Assim o utensílio de todos os dias, a vestimenta do pobre deriva de modelos prestigiosos criados pelos movimentos superficiais da economia, da moda e do gosto. É aí que se capta o estilo de uma época, nas profundezas do cotidiano. Quando Huizinga chama Jean de Salisbury um ‘espírito pré-gótico’, reconhecia-lhe uma superioridade de antecipação com respeito à evolução histórica, pelo prefixo, pela expressão em que o espírito (mind) evoca a mentalidade, fazendo desta a testemunha coletiva de uma época, como Lucien Febvre o fez de um Rabelais arrancado do anacronismo dos eruditos das idéias para voltar à historicidade concreta dos historiadores das mentalidades.

O discurso dos homens, em qualquer tom que tenha sido pronunciado – o da convicção, o da emoção, o da ênfase – é freqüentemente apenas um amontoado de idéias feitas, de lugares comuns, de velharias intelectuais, exutório heteróclito de restos de culturas e de mentalidades de diversas origens e de várias épocas.
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Fonte: Le Goff, J. 1976. As mentalidades: uma história ambígua. In: J. Le Goff & P. Nora, orgs. História: novos objetos. RJ, Francisco Alves.


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