31 maio 2010

A inundação

Armando da Silva Carvalho

O mar invade Lisboa mas por dentro
enquanto o vento enfeita
as filhas dos polícias
e há um vago frio nos olhos
mais dementes
destas tardes.

As crianças vestem
coloridamente
seu mórbido e inesperado
séquito.

Mas nas ruas da Baixa
nota-se uma abundância
palpável

um rio vagamente doloroso

um mar por dentro.

Nas lojas de fazendas
na menina da caixa
no fastio amarfanhado
dos porteiros.

Gotas marítimas notavam-se
no brilhos das pulseiras
de uma amante
líquido miúdo mas brilhante
até nas varizes das peixeiras.

Há quem diga do sol
um sol insólito é bem certo
mas nota-se até na cauda dos insectos
piedosas solícitas gotas de humi(l)dade.

O mar invade tudo mas por dentro.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1965.

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