31 maio 2010

A inundação

Armando da Silva Carvalho

O mar invade Lisboa mas por dentro
enquanto o vento enfeita
as filhas dos polícias
e há um vago frio nos olhos
mais dementes
destas tardes.

As crianças vestem
coloridamente
seu mórbido e inesperado
séquito.

Mas nas ruas da Baixa
nota-se uma abundância
palpável

um rio vagamente doloroso

um mar por dentro.

Nas lojas de fazendas
na menina da caixa
no fastio amarfanhado
dos porteiros.

Gotas marítimas notavam-se
no brilhos das pulseiras
de uma amante
líquido miúdo mas brilhante
até nas varizes das peixeiras.

Há quem diga do sol
um sol insólito é bem certo
mas nota-se até na cauda dos insectos
piedosas solícitas gotas de humi(l)dade.

O mar invade tudo mas por dentro.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1965.

29 maio 2010

Filosofia

Ascenso Ferreira

Hora de comer – comer!
Hora de dormir – dormir!
Hora de vadiar – vadiar!

Hora de trabalhar?
– Pernas pro ar que ninguém é de ferro!

Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 1939, com a dedicatória: “A José Pereira de Araújo – ‘Doutorzinhio de Escada’”.

27 maio 2010

Anotações sobre as cores

Ludwig Wittgenstein

Parte 1

1.
Um jogo de linguagem: Referir se determinado corpo é mais claro ou mais escuro que um outro. – Mas agora existe um jogo semelhante: enunciar a relação entre a claridade de certos tons de cor. (Comparar com o seguinte: determinar a relação entre os comprimentos de duas varas – e a relação entre dois números.) A forma das proposições em ambos os jogos de linguagem é a mesma: ‘X é mais claro que Y’. Mas, no primeiro, a relação é externa e a proposição temporal; no segundo, a relação é interna e a proposição atemporal.
[...]

Parte 3

31.
Falamos de ‘daltonismo’ e chamamos-lhe defeito. Mas facilmente poderia haver algumas capacidades diferentes, nenhuma delas manifestamente inferior às outras – e lembre-se também que um homem pode atravessar a vida sem ter notado o seu daltonismo, até que uma ocasião especial o revele.
[...]

120.

Ou ainda: Terão as pessoas de visão normal e os daltónicos o mesmo conceito de daltonismo?
E, no entanto, os daltónicos compreendem a afirmação ‘sou daltónico’ e também a sua negação.
Um daltónico não só é incapaz de aprender a utilizar os nossos nomes de cores, como também não pode aprender a palavra ‘daltónico’ exactamente como o faz uma pessoa normal. Ele nem sempre pode, por exemplo, determinar o daltonismo nos casos em que o pode uma pessoa de visão normal.
[...]

Fonte: Wittgenstein, L. 1987 [1977]. Anotações sobre as cores. Lisboa, Edições 70.

24 maio 2010

Um cavaleiro na encruzilhada


Viktor Vasnetsov (1848-1926). A knight at the crossroads. 1878.

Fonte da foto: Wikipedia.

22 maio 2010

A todos dás sepultura...

Gil Vicente

A todos dás sepultura,
Morte! Diz-me: que é de ti?:
que te amo,
e por minha desventura
és tão surda para mi
que te chamo.
Pois que a minha alma se anoja
com as tristes ânsias minhas,
tão penada,
que rasgada seja a folha
onde estão ’scritos meus dias,
e queimada!

Fonte: Quintela, P. 2001. Obras completas, vol. 5. Lisboa, Calouste Gulbenkian. Gil Vicente (1465?-1536?) foi um dos pioneiros da literatura renascentista portuguesa.

19 maio 2010

O acendedor de lampiões

Jorge de Lima

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem, infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:
Ele, que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!

Fonte: Lima, J. 1997. Jorge de Lima: poesia, 5ª edição. RJ, Agir. Poema publicado em livro em 1914.

17 maio 2010

Vírus

Hyman Hartman

[...]
Os vírus sempre foram controversos, uma vez que parecem preencher a lacuna entre o mundo vivo e o não-vivo. De um lado, eles são capazes de autoduplicação e mutação e, de outro, podem ser cristalizados. O vírus parece ser uma parte do aparato genético celular que pode ser passada de célula a célula. Nas bactérias, um extenso sistema de recombinação ou troca de genes por meio de infecção se desenvolveu. A transdução e a troca de plasmídios são sistemas de recombinação por infecção. Vírus bacterianos são apenas a ponta do iceberg, quando consideramos os vírus principalmente como agentes da troca de genes entre células. Um caso recente é a difusão da resistência a antibióticos nas bactérias graças à difusão de um plasmídio que carrega genes de resistência a antibióticos. Desse modo, a transferência horizontal (isto é, numa mesma geração) de genes por meio de infecção está agora bem caracterizada nas bactérias. A questão que atualmente está sob intensa investigação é se os vírus que nos infectam são, em sua maioria, virulentos ou estão envolvidos na transferência de genes entre organismos.
[...]

Fonte: Hartman, H. 2000. Vírus, evolução e origem da vida. In: El-Hani, C. N. & Videira, A. A. P. (orgs.) O que é vida? RJ, Relume Dumará.

15 maio 2010

A enferma


Félix Vallotton (1865-1925). La malade. 1892.

Fonte da foto: Wikipedia.

13 maio 2010

Sendas de rugas

Astrid Cabral

A insônia e o sono
habitam o rosto dessas mulheres
de sorrisos maculados de metais.
Elas caminham para a morte
pelas sendas de suas rugas
e cobrem os seios lassos
não de tecidos grossos
mas de restos de sonhos.
Da memória de outros dias
elas se nutrem e não
das carnes que temperam
com cebolas.

Fonte: Félix, M., org. 1998. 41 poetas do Rio. RJ, Funarte. Poema publicado em livro em 1979.

12 maio 2010

Quarenta e três meses no ar

F. Ponce de León

Nesta quarta-feira, 12/5, o Poesia contra a guerra completa quarenta e três meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 93.840 visitas haviam sido registradas nesse período.

Desde o balanço mensal anterior – Quarenta e dois meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Alexei Bueno, Daniel E. Brown, Diogo Alcoforado, Edward J. Kormondy, Eugenio Florit, Friedrich Schiller, Georg Trakl, João Carlos Pádua, Keith Reid, Neide Archanjo e Ralph Waldo Emerson. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Henri Fantin-Latour e Pietro Annigoni.

11 maio 2010

Desflorestamento: pausa para o lanche?

Felipe A. P. L. Costa

Negócios, mentiras e pilhagens andam juntos com bastante frequência. No caso de grandes negócios, parece haver uma lei: só prosperam – principalmente em países onde a acumulação de capital é recente – se forem sustentados por uma cadeia de atividades sujas e irregulares.
[...]

Outra atividade econômica famosa pelos tentáculos sujos que ostenta é o chamado agronegócio – grandes empreendimentos agrícolas voltados basicamente para a exportação. Vejamos o caso da soja, uma leguminosa de pequeno porte, aparentemente frágil, mas cuja cultura é poderosa o suficiente para eleger prefeitos, deputados e até governadores – além de grilar terras e dizimar qualquer trecho de vegetação nativa que encontre pela frente.

Poucos anos atrás, a opinião pública brasileira foi informada sobre a cadeia de negócios irregulares e criminosos que sustentava boa parte da cultura da soja no país, particularmente nas regiões Norte e Centro-Oeste. Foi revelado, entre outras coisas, que o dinheiro que fazia a engrenagem do desflorestamento funcionar em boa parte da Amazônia provinha da indústria de alimento, incluindo fabricantes de óleo de cozinha e ração animal.
[...]

Assim, em meados de 2006, as empresas afiliadas à Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais e à Associação Nacional dos Exportadores de Cereais divulgaram um comunicado conjunto sobre o assunto. [...]

A ‘moratória da soja’, como ficou conhecida, já foi estendida mais de uma vez, a última delas até julho de 2010. É preciso, no entanto, continuar de olhos abertos: nos últimos anos, mesmo com a moratória em vigor, surgiram denúncias de que algumas empresas estariam desrespeitando o acordo. No fim das contas, a pergunta que a indústria da soja precisa responder é bem simples: as empresas do setor vão mesmo trilhar o caminho da legalidade ou a moratória foi apenas uma ‘cortina de fumaça’ – uma pausa para o lanche, antes de voltar aos negócios sujos e irregulares de antes?

Fonte: Costa, F. A. P. L. 2010. Desflorestamento: pausa para o lanche? Ciência Hoje 270: 68-9. O sítio da revista está aqui.

09 maio 2010

O destino

Ralph Waldo Emerson

Tênues símbolos, flutuando pelas nuvens,
Ao poeta solitário davam testemunho,
E as aves, do céu as mensageiras,
No cantar lhe falavam de ruídos misteriosos,
Para, igual ao adivinho, advertir-lhe a alma.
Segue então o poeta o caminho reto e certo
Quando, desdenhando a voz dos escribas e dos correios,
Em seu íntimo pensar, onde já, desde a aurora,
Perpassa a sombra das tardes que matiza o poente.
Porque o pressentimento do Vidente se encadeia
No fato que ao espírito o sonho lhe revela.
O devaneio do futuro e a força infinda
Que faz nosso porvir são um só Gênio.

Fonte: Emerson, R. W. 2004 [1860]. A conduta para a vida. SP, Martin Claret.


07 maio 2010

Testamento

Alexei Bueno

Quando acabar-se a piada trágica
Juntem-me a ossada, façam-na em pó,
E a uma ampulheta brilhante e mágica
Vazem-no inteiro, sem sentir dó.

Que assim prossiga como viveu,
E encarcerado na insossa hora
Role sem rumo, tal como eu,
E veja a vida, mas só de fora.

E isto já basta... O sol brílhará,
E ornado em tempo o pó não descansa.
Oh! ele rirá! E bem vos roerá
Homens de um dia... Bela vingança!

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial.

05 maio 2010

A whiter shade of pale

Keith Reid

We skipped the light fandango
turned cartwheels ’cross the floor
I was feeling kind a seasick
but the crowd called out for more
The room was humming harder
as the ceiling flew away
When we called out for another drink
the waiter brought a tray

And so it was that later
as the miller told his tale
that her face, at first just ghostly,
turned a whiter shade of pale

She said, “There is no reason
and the truth is plain to see.”
But I wandered through my playing cards
and would not let her be
one of sixteen vestal virgins
who were leaving for the coast
and although my eyes were open
they might have just as well’ve been closed

And so...

She said, “I’m home on shore leave,”
though in truth we were at sea
so I took her by the looking glass
and forced her to agree
saying, “You must be the mermaid
who took Neptune for a ride.”
But she smiled at me so sadly
that my anger straightway died

If music be the food of love
then laughter is its queen
and likewise if behind is in front
then dirt in truth is clean
My mouth by then like cardboard
seemed to slip straight through my head
So we crash-dived straightway quickly
and attacked the ocean bed

Fonte (duas primeiras estrofes mais o refrão): VHS do filme Contos de Nova York [New York stories], 1989. Canção originalmente gravada em 1967 (sem as duas últimas estrofes).


03 maio 2010

Espantalho


Pietro Annigoni (1910-1988). Spaventapasseri. 1950.

Fonte da foto: Museum Syndicate.

01 maio 2010

Ode à alegria

Friedrich Schiller

Amigos, basta desses cantos!
Entoemos um outro e mais agradecido:
O cântico do júbilo!


Alegria, brilhante centelha da divindade,
Filha do Elísio,
Adentramos, semblantes ardentes,
Teu glorioso santuário!
Tua força mágica irmana,
O que o mundo separou;
Todos os homens tornam-se irmãos
Onde a asa tua gentil pousou.

Quem atingiu o supremo bem,
De ter por amigo um amigo,
Quem obteve suave esposa,
Esteja conosco no áureo júbilo!
Sim, quem ainda uma só alma
Pôde no mundo sua chamar!
Quem não pôde conduza em pranto
Para longe daqui seu triste caminhar.

Todos os seres bebem da alegria
No seio da natureza;
Bons e maus
Vão por seus floridos caminhos.
Prodigaliza-nos com beijos e vinho,
Amigos fiéis até a morte;
Até o verme pode sentir prazer,
E o querubim permanece diante de Deus!

Alegres, como corpos celestiais voam
Sobre o plano rubro dos céus,
Ide, irmãos, a exultar,
Alegres, como heróis rumo à vitória.

Multidões, eu vos abraço.
Esse beijo envio ao mundo inteiro!
Irmãos! Acima desse dossel estrelado
Deve reinar um terno Pai.
Prostrais-vos, multidões?
Sentes o teu Criador, mundo?
Buscai-o então acima dos astros!
Além das estrelas está sua morada.

Fonte: encarte que acompanha o álbum Sinfonias 5 & 9 (1987), de Ludwig van Beethoven. A primeira versão do poema original foi publicada em 1786.

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