29 abril 2010

Elogio do desenho

Diogo Alcoforado

1.
Apenas o mover-se desafia
outro impulso, – a mobilidade
dos músculos contrácteis onde há-de
abrir-se a imagem que devia

ao tempo cada corpo: doação
ou gesto que em si se silencia.
Que medo ou que dor, – ou só: que via
desdobra a passagem dessa mão

por sobre a folha lisa? Turbação
tornando-se rigor? ou alegria,
ou forma de serena gravidade

no centro desmedido de tal chão?
E um rasto imenso já se guia:
transparente, na luz que o invade.

2.
Deslumbra-se a parte que merece
o deslumbramento: a mão correndo
entre folhas suspensas quase sendo
presente que o corpo estremece

no selo de seu termo. Evidência:
de súbito silêncio, de frágil
equilíbrio instante sobre ágil
caudal. Que intervalo, ou cadência,

de um fulgor sereno se desprende?
indizível, sucede-se mais lento
o trânsito: imagem do sossego

ou passo paralelo que o fende.
Espanto é então outro alento:
o modo (deslumbrado) do apego.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1988.

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