13 julho 2009

Lembrando um cão chamado Zambeze

Ruy Cinatti

Por onde andamos nós, poetas, vendo
o que não vemos? Por onde, apenas
somos conscientes e retemos,
medindo o que se mede
fundo? Não basta o ermo,
a noite da cidade,
esse marulho oceânico que se propaga
e que nos prende
a um fio de prumo? Acaso entende
quem amor nos pede
se o além nos serve? Gastos sapatos
em idas e vindas.
Os meus passos voltam aos meus passos.
Encontro-me comigo. E só lastimo
quem me contempla, quem desvenda,
julgando consolar-me, a minha face,
meus símbolos gastos. E não entendo
a voz dos animais quando se aclara
feroz, mordente
e tão desesperada
a matutina imagem
do país de origem. Eu só percebo
que enterro o meu cão! Ó raça
de pêlo fulvo, de focinho húmido
meu cão metido n’água,
latindo fundo
ao mar que nos separa
da estirpe-raiz! Meu cão de caça
que, de repente, farejou gazelas
onde as não havia. Teu o mundo
mítico que alcançaste
ao fim de anos de ausência. Mundo
de ventos sibilando, prados secos, ermos,
canaviais e montes separando
os homens do longínquo espaço. Teu o mundo
anunciado pela morte! Assim a vida
quando o amor desperta,
os passos levitam,
a face enrubesce, a voz se precipita.
Mundo real anunciado!
Festa solitária!
Solene, o acto!

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado – com a indicação ‘Para Domingos Arouca’ – em 1973.

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