30 março 2009

Os filósofos

Carlos Saldanha

Ante o empolgamento
que foi galvanizando
sucessivamente
os frades copistas,
os geômetras,
os astrônomos,
os pálidos almirantes com suas lunetas,
os monarcas augustos com suas esferas armilares,
e os tabeliões
Ante as maravilhas da Ciência
e do Progresso Tecnológico,
Aconteceu que
os filósofos, pouco a pouco,
com suas idéias vagas,
suas caraminholas na cabeça,
um após outro,
entre chacotas mal disfarçadas,
foram sendo jogados ao mar,
tichipum, tichipum,
por cima do parapeito do convés
do Barco do Conhecimento
que navega por mares ignotos,
levando à proa
a orgulhosa máscara
de Francis Bacon...

Cuidado, Capitão,
Cuidado...

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.

28 março 2009

Faça larga esta Cama

Emily Dickinson

Faça larga esta Cama –
Com Devoção a faça –
Para nela esperar pela Sentença
Definitiva e exata.

Justo o Colchão lhe fique –
Cheio o seu Travesseiro –
Que o barulho dourado da Alvorada
Não perturbe este Leito.

Fonte: Dickinson, E. 2006. Alguns poemas. SP, Iluminuras. Poema publicado em livro em 1924.

26 março 2009

O estrangeiro

Albert Camus

1.
Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.
[...]

4.
Mesmo no banco dos réus, é sempre interessante ouvir falar de si mesmo. Durante as falas do promotor e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim, e talvez até mais de mim do que do meu crime. Eram, aliás, assim tão diferentes esses discursos? O advogado levantava os braços e admitia a culpa, mas com atenuantes. O promotor estendia as mãos e denunciava a culpabilidade, mas sem atenuantes. No entanto, uma coisa me incomodava vagamente. Apesar das minhas preocupações, às vezes eu ficava tentado a intervir e meu advogado me dizia, então, “cale-se, é melhor para o seu caso”. De algum modo, pareciam tratar deste caso à margem de mim. Tudo se desenrolava sem a minha intervenção. Acertavam o meu destino, sem me pedir uma opinião. De vez em quando, tinha vontade de interromper todo mundo e dizer: Mas afinal quem é o acusado? É importante ser o acusado. E tenho algo a dizer.” Mas, pensando bem, nada tinha a dizer. Devo reconhecer, aliás, que o interesse que se tem em ocupar as pessoas não dura muito tempo. Por exemplo, o discurso do promotor me cansou logo. Apenas me impressionaram ou despertaram meu interesse alguns fragmentos, gestos ou tiradas inteiras, mas desvinculadas do conjunto.

A essência do seu pensamento, se compreendi bem, é que eu premeditara o crime. Pelo menos foi isso que tentou demonstrar. Como ele próprio dizia:

– Provarei o que digo, senhores, e eu o farei duplamente. À luz ofuscante dos fatos, em primeiro lugar, e em seguida sob a iluminação sombria que me será fornecida pela psicologia desta alma criminosa.
[...]

Fonte: Camus, A. 1998 [1942]. O estrangeiro, 17ª edição. RJ, Record.

25 março 2009

A balsa do Méduse


Théodore Géricault (1791-1824). Le radeau de la Méduse. 1817-8.

Fonte da foto: Wikipedia.

24 março 2009

Formigas em ação

Deborah Gordon

O mistério básico que cerca as colônias de formigas é que nelas não há administração. Uma organização ativa sem que haja alguém no comando é algo tão diverso do modo como os seres humanos operam que chega a ser quase inconcebível. Não há nenhum controle central. Nenhum inseto dá ordens a outro ou o instrui a fazer coisas de determinada maneira. Nenhum indivíduo tem conhecimento do que deve ser feito para levar a cabo qualquer tarefa da colônia. Cada formiga abre seu caminho arranhando e picando através do minúsculo mundo de sua vizinhança imediata. As formigas se encontram, se separam, vão cuidar de seus afazeres. De certa maneira, esses pequenos eventos criam um padrão que engendra o comportamento coordenado da colônia.
[...]

Fonte: Gordon, D. M. 2002 [1999]. Formigas em ação: como se organiza uma sociedade de insetos. RJ, Jorge Zahar.

22 março 2009

Desenho

Sidónio Muralha

Desenhei um mosquito.
Veio o vento e soprou.
Saiu do papel o mosquito
e voou.

Não é caso de briga
mas se o mosquito o picar
não diga
que não sei desenhar.

Fonte: edição No. 87 (dezembro de 1998) da revista Ciência Hoje das Crianças. Poema originalmente publicado em 1976.

20 março 2009

Arte poética

Odylo Costa, filho

Assim, amigo, desejaria eu escrever:
como um galho de árvore seca
entretanto úmido da noite.
Como quem estende a mão, esquecido de si próprio,
aos que a dor ameaça afogar em desespero,
num ímpeto de secreta fraternidade.
Despreocupado e quotidiano como a conversa
dos que não sabem que em breve vão morrer de repente.
Sem adormecer a consciência de ninguém
mas sem tirar o sono a nenhum corpo.
Modesto como quem serve à mesa
leve como quem fala com menino
natural como os bichos na floresta
teimoso como quem quebra pedra no sol.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial.

18 março 2009

Viagens de Gulliver

Jonathan Swift

Parte 1

2.
Eu agora podia ficar de pé, apesar do incômodo da corrente presa à perna. Para me comunicar com o imperador, porém, deitei-me no chão, de lado, para meu rosto ficar à altura do dele. Ele se aproximou sem receio, apesar de estar com a espada na mão, para se defender caso eu tentasse alguma coisa. A espada media quase o comprimento do meu dedo médio, era de ouro e cravejada de diamantes. Não entendi nada do que o imperador disse, nem ele a minha resposta. A imperatriz e os príncipes observavam, sentados em poltronas trazidas especialmente para a ocasião.

O imperador mandou que os sacerdotes e os mestres do país tentassem conversar comigo. Falei em todas as línguas que conhecia: inglês, holandês antigo e moderno, latim, francês, espanhol e língua franca (uma mistura de português com outras línguas de marinheiros). Continuamos desentendidos. Depois que o imperador e seu séquito se despediram, o populacho se amontoou, curioso, ao meu redor. Alguns, mais afoitos, se atreveram a me atirar algumas flechas quando eu estava sentado, e quase me acertaram no olho.
[...]

Fonte: Swift, J. 2003 [1726]. Viagens de Gulliver. SP, Difusão Cultural do Livro.

16 março 2009

Antígona e Polinice, morto


Nikephoros Lytra (1832-1904). Antigone in front of dead Polynikes. 1865.

Fonte: Wikipedia.

14 março 2009

Apelo

Pedro Homem de Mello

Quem quer que sejas, vem a mim apenas
De noite, quando as rosas adormecem!

Vem quando a treva alonga as mãos morenas
E quando as aves de voar se esquecem.

Vem a mim quando, até nos pesadelos,
O amor tenha a beleza da mentira.

Vem quando o vento acorda em meus cabelos,
Como em folhagem que, ávida, respira...

Vem como a sombra, quando a estrada é nua,
Num risco de asa, vem, serenamente!

Como as estrelas, quando não há Lua
Ou como os peixes, quando não há gente...

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1952.

12 março 2009

Por que as mulheres menstruam?

Felipe A. P. L. Costa

O sistema reprodutor feminino passa, aproximadamente a cada 28 dias, por dois ciclos: o ovariano, durante o qual ocorre a ovulação, e o uterino (ou menstrual), durante o qual se dá a menstruação. Na primeira metade de um ciclo ovariano normal, um oócito primário matura, tornando-se oócito secundário (óvulo), e este é expelido do ovário (ovulação) em direção ao interior da trompa uterina. Em seguida, as células do ovário envolvidas na maturação do oócito formam uma massa de tecido endócrino, denominada corpo lúteo, que produz hormônios (estrogênio e progesterona) por cerca de duas semanas. Se nesse período o óvulo liberado não for fertilizado, o corpo lúteo degenera.
[...]

Uma descrição da fisiologia da menstruação, por mais detalhada e extensa que seja, não responde, por si só, a outro tipo de pergunta: ‘por que’ as mulheres menstruam? Ao fazer essa pergunta, igualmente válida e pertinente; adquirimos uma perspectiva nova da questão – isto é, o assunto permanece o mesmo, mas o enfoque muda.
[...]

A bem da verdade, até bem pouco tempo não havia uma teoria biológica que explicasse de modo consistente a evolução da menstruação, embora os detalhes fisiológicos sejam bem conhecidos. A situação começou a mudar nas últimas décadas, quando surgiram as primeiras hipóteses explicativas de cunho evolutivo, trazendo várias ideias interessantes e promissoras. Um exemplo é a hipótese formulada pela bióloga norte-americana Margie Profet, segundo a qual a menstruação teria evoluído como um mecanismo de defesa contra micróbios nocivos trazidos pelos espermatozoides -- ver em A beleza da fera (Rocco, 1998), de Natalie Angier.
[...]

Explicações adicionais (adaptativas ou não) apareceram depois disso, como a hipótese de que a menstruação teria evoluído como um indicador externo do ciclo reprodutivo feminino. Até agora, porém, nenhuma das hipóteses parece ter se tornado hegemônica entre os estudiosos. Ainda que todas as propostas já publicadas mostrem-se inconsistentes e sejam substituídas em futuro próximo, não há dúvida de que o enfoque evolutivo lançou luz nova sobre um assunto ainda cercado de preconceitos, erros e mal-entendidos, inclusive entre os especialistas.

Por exemplo, muitos especialistas em fisiologia humana sem formação em biologia evolutiva encaram as perguntas levantadas por biólogos evolucionistas como excessivamente ‘selecionistas’ (“a menstruação, afinal, não seria uma adaptação”) ou, pior ainda, como sem sentido. Entretanto, com exceção talvez desses últimos (os fisiologistas para quem “fenômenos e processos fisiológicos são o que são, e pronto”), dificilmente algum estudioso da biologia reprodutiva humana discordaria da pertinência das perguntas que vêm sendo levantadas pela biologia evolutiva. Por que as mulheres menstruam? Por que não manter a camada uterina (endométrio) até que o bebê precise dela? E mesmo que o descarte do endométrio seja uma medida econômica, por que o sangramento copioso? Por quê?

Fonte: Costa, F. A. P. L. 2009. Menstruação: outra perspectiva é possível. Ciência Hoje 257: 72-73. O sítio eletrônico da revista está aqui.

Dois anos e cinco meses no ar

F. Ponce de León

Nesta quinta-feira, 12/3, o Poesia contra a guerra completa dois anos e cinco meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 60.608 visitas haviam sido registradas.

Desde o balanço mensal anterior – Dois anos e quatro meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Alfonso Reyes, Ana Cristina Cesar, Cartola, John Ziman, Henry Walter Bates, Leonel Rugama, Marq de Villiers e Miguel Torga. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Gustave Caillebotte, Georgios Jakobides e Nikolaos Gysis.

10 março 2009

Livro de horas

Miguel Torga

Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,

e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!

Fonte: Torga, M. 1958 [1936]. O outro livro de Job, 4ª edição. Coimbra, Edição do Autor.

08 março 2009

Decorando


Nikolaos Gysis (1842-1901). Learning by heart. 1883.

Fonte da foto: Paleta.

06 março 2009

O subcontinente indiano

Marq de Villiers

[...]
O rio Ganges, o rio mais sagrado para os hindus, a dádiva de Deus à humanidade civilizada, doador de bênçãos e purificador de pecados, nasce nas encostas do sul do Himalaia, na Índia, a 2.510 quilômetros da sua desembocadura na baía de Bengala. Bem, é isto o que afirma o texto indiano, mas a situação não é assim tão clara: uma consulta a qualquer mapa da região vai mostrar que a maior parte da água do Ganges vem da China e do Nepal, antes de correr para a Índia. Cerca de 40% do fluxo total e quase três quartos do fluxo durante a estação seca vêm de fora do país, fatos que tantos os chineses como os nepaleses vêm reafirmando à Índia nas últimas décadas. O rio serpenteia pela várzea de Ganges, forma durante um breve trecho a fronteira entre a Índia e Bangladesh, onde ele assume o nome de Bhadma, e depois se junta ao Jamuna-Brahmaputra, que por seu lado nasce na China, e corre num grande círculo em torno do Butão, antes de passar pela Índia em direção a Bangladesh. Ali ele desemboca na baía de Bengala.

É de uma ironia atroz que uma das mais altas concentrações da população muito pobre no mundo viva nas planícies férteis de uma das maiores bacias fluviais do globo. Os sistemas fluviais do Ganges e do Brahmaputra ocupam menos de um quinto de 1% da massa de terra do mundo, mas as suas bacias abrigam 10% de toda população mundial. Toda área é propensa a enchentes, secas e ciclones; às vezes, necessita desesperadamente de água; outras vezes, parece que todo o lugar está se afogando. Por mais de quarenta anos os governos nacionais da área vêm lutando com a distribuição e administração da água disponível. As questões ambientais estão irremediavelmente enredadas numa confusão técnico-política, enquanto a demanda e o abastecimento são alinhavados num difícil emaranhado de questões políticas, étnicas e nacionalistas.
[...]

Fonte: Villiers, M. 2002. Água. RJ, Ediouro.

05 março 2009

Sessenta mil visitas

F. Ponce de León

No fim do expediente de ontem, quarta-feira, o Poesia contra a guerra ultrapassou a marca das 60 mil visitas. Do balanço numérico anterior – ver ‘Cinqüenta mil visitas’, em 16/10 – até ontem (4/3) ocorreram em média cerca de 71 visitas/dia. O recorde positivo de visitantes únicos em um só dia permanece em 185, alcançado em 4/6/2008.

03 março 2009

A.

Alfonso Reyes

Tardes assim, já as respirei acaso?
Cabelos soltos, úmidos do banho;
Cheiro de granja, frescor de garganta,
Primavera toda ela flor e água.

Abriu-se a reixa e fomos a cavalo.
O céu era canção, carícia o campo,
E a promessa da chuva andava viva
E alegremente pelos altos cumes.

Tremia cada folha e era bem minha,
E eu também, de medo sacudida
Entre pressentimentos e relâmpagos.

Pulsavam entre nuvens as estrelas,
E o palpitar da terra nos chegava
Pelo tranco ligeiro do cavalo.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema – originalmente intitulado ‘Tardes así...’ – datado de 1922.

01 março 2009

La tierra es un satelite de la luna

Leonel Rugama

El apolo 2 costó más que el apolo 1
el apolo 1 costó bastante.

El apolo 3 costó más que el apolo 2
el apolo 2 costó más que el apolo 1
el apolo 1 costó bastante.

El apolo 4 costó más que el apolo 3
el apolo 3 costó más que el apolo 2
el apolo 2 costó más que el apolo 1
el apolo 1 costó bastante.

El apolo 8 costó un montón, pero no se sintió
porque los astronautas eran protestantes
y desde la luna leyeron la Biblia,
maravillando y alegrando a todos los cristianos
y a la venida el papa Paulo VI les dio la bendición.

El apolo 9 costó más que todos juntos
junto con el apolo 1 que costó bastante.

Los bisabuelos de la gente de Acahualinca tenían menos hambre que los abuelos.
Los bisabuelos se murieron de hambre.
Los abuelos de la gente de Acahualinca tenían menos hambre que los padres.
Los abuelos murieron de hambre.
Los padres de la gente de Acahualinca tenían menos hambre que los hijos de la gente de allí.
Los padres se murieron de hambre.
La gente de Acahualinca tiene menos hambre que los hijos de la gente de allí.
Los hijos de la gente de Acahualinca no nacen por hambre,
y tienen hambre de nacer, para morirse de hambre.
Bienaventurados los pobres porque de ellos será la luna.

Fonte: Gelman, J. 1986. Ciencia y arte. Interciencia 11: 135-136. Poema publicado em 1982.

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