14 julho 2008

Girassol da madrugada

Mário de Andrade

1.
De uma cantante alegria onde riem-se as alvas uiaras
Te olho como se deve olhar, contemplação,
E a lâmina que a luz tauxia de indolências
É toda um esplendor de ti, riso escolhido no céu.

Assim. Que jamais um pudor te humanize. É feliz
Deixar que o meu olhar te conceda o que é teu,
Carne que é flor de girassol! sombra de anil!
Eu encontro em mim mesmo uma espécie de abril
Em que se espalha o teu sinal, suave, perpetuamente.

2.
Diga aos menos que nem você quer mais desses gestos traiçoeiros
Em que o amor se compõe feito uma luta;
Isso trará mais paz, por quanto o caminho foi longo,
Abrindo o nosso passo através dos espelhos maduros.

Você não diz porém o vosso corpo está delindo no ar,
Você apenas esconde os olhos no meu braço e encontra a paz na escuridão.
A noite se esvai lá fora serena sobre os telhados,
Enquanto o nosso par aguarda, soleníssimo,
Radiando luz, nesse esplendor dos que não sabem mais pra onde ir.

3.
Si o teu perfil é purríssimo, si os teus lábios
São crianças que se esvaecem no leite,
Si é pueril o teu olhar que não reflete por detrás,
Si te inclinas e a sombra caminha na direção do futuro:

Eu sei que tu sabes o que eu nem sei si tu sabes,
Em ti se resume a perversa e imaculada correria dos fatos,
És grande por demais para que sejas só felicidade!
És tudo o que eu aceito que me sejas
Só pra que o sono passe, e me acordares
Com a aurora incalculavelmente mansa do sorriso.

4.
Não abandonarei jamais de-noite as tuas carícias,
De-dia não seremos nada e a ambições convulsivas
Nos turbilhonarão com as malícias da poeira
Em que o sol chapeará torvelins uniformes.

E voltarei sempre de-noite às tuas carícias,
E serão búzios e bumbas e tripúdios invisíveis
Porque a Divinidade muito naturalmente virá.
Agressiva Ela virá sentar em nosso teto,
E seus monstruosos pés pesarão sobre nossas cabeças,
De-noite, sobre nossas cabeças inutilizadas pelo amor.

5.
Teu dedo curioso me segue lento no rosto
Os sulcos, as sombras machucadas por onde a vida passou.
Que silêncio, prenda minha... Que desvio triunfal da verdade,
Que círculos vagarosos na lagoa em que uma asa gratuita roçou...

Tive quatro amores eternos...
O primeiro era uma donzela,
O segundo... eclipse, boi que fala, cataclisma,
O terceiro era a rica senhora,
O quarto és tu... E eu afinal me repousei dos meus cuidados.

6.
Os trens-de-ferro estão longe, as florestas e as bonitas cidades,
Não há senão Narciso entre nós dois, lagoa
Já se perdeu saciado o desperdício das uiaras,
Há só meu êxtase pousando devagar sobre você.

Oh que pureza sem impaciência nos calma
Numa fragrância imaterial, enquanto os dois corpos se agradam,
Impossíveis que nem a morte e os bons princípios.

Que silêncio caiu sobre a vossa paisagem de excesso dourado!
Nem beijo, nem brisa... Só, no antro da noite, a insônia apaixonada
Em que a paz interior brinca de ser tristeza.

7.
A noite se esvai lá fora serena sobre os telhados
Num vago rumor confuso de mar e asas espalmadas,
Eu, debruçado sobre vossa perfeição, num cessar ardentíssimo,
Agora pouso, agora vou beber vosso olhar estagnado, oh minha lagoa!

Eis que ciumenta noção de tempo, tropeçando em maracás,
Assusta guarás, colhereiras e briga com os arlequins,
Vem chegando a manhã. Porém, mais compacta que a morte,
Para nós é a sonolenta noite que nasce detrás das carícias esparsas.

Flor! Flor!...

Graça dourada!...

Flor...

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1922.

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