30 abril 2008

O mal-estar da cultura

Konrad Lorenz

A alma é muitíssimo mais antiga do que o espírito humano. Não sabemos quando surgiu a alma, a sensação de uma vivência subjetiva. Qualquer pessoa que conheça os animais superiores sabe que a sua vivência, as suas “emoções” são fraternalmente aparentadas com as nossas. Um cão tem uma alma que de modo geral é igual à minha, e que provavelmente ainda a ultrapasse na capacidade de amar incondicionalmente; um espírito, conforme aqui o definimos, já não é característica própria de animal algum, nem dos cães nem tampouco dos antropóides mais proximamente aparentados aos homens.
[...]

A camisa-de-força cultural e civilizatória, em que a humanidade se meteu, se estreita cada vez mais. Nem o nosso comportamento natural nem as “boas maneiras” que por tradição se tornaram a nossa segunda natureza são adequadas ao atual mundo ambiente, artificialmente construído e quase totalmente determinado pela tecnocracia. Creio que alguns jovens rebeldes confundem essas imposições diversas entre si, quando, protestando contra a sociedade do sucesso capitalista-tecnocrático, infringem as normas dos “bons modos”. Parece incompreensível para muitos desses jovens que a sua revolta contra a sociedade do sucesso tecnocrático teria muito melhores perspectivas de sucesso, caso não infringissem as normas dos “bons modos”, da dignidade humana e de tradições éticas e estéticas. Não percamos de vista, porém, que toda a rebelião da atual juventude demonstra, se bem que em parte irrefletida ou irracionalmente, o pressentimento de uma verdade: o espírito humano tornou-se, através dos caminhos percorridos pela tecnocracia, o antagonista da vida em si e, portanto, o antagonista da alma humana.
[...]

Fonte: Lorenz, K. 1986 [1983]. A demolição do homem. SP, Brasiliense.

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