02 outubro 2007

Merlim e a velha mulher

Guillaume Apollinaire

O sol naquele dia se esparramava como um ventre
Sangrando lentamente sobre o céu maternal
A luz é minha mãe ó luz sangrenta
As nuvens corriam como um fluxo menstrual

Na encruzilhada onde nenhuma flor a não ser a rosa
Dos ventos mas sem espinho pode no inverno florescer
Merlim vigiava a vida e a eterna causa
Que faz morrer e depois o universo renascer

Uma velha sobre uma mula de verde coberta
Veio acompanhando a margem fluvial
E o antigo Merlim na planície deserta
Batia no peito exclamando Rival

O meu ser gelado cujo destino me oprime
Neste sol de carne que treme queres ver
Minha Memória chegar e amar-me minha igual
E que filho infeliz e belo eu quero ter

Seu gesto fez cair o orgulho dos cataclismas
O sol dançando remexia o umbigo
E de repente a primavera de amor e heroísmos
Trouxe um jovem dia de abril comigo

Os caminhos que vêm do oeste eram cobertos
De ossadas de ervas densas de destinos e flores
De tremidos monumentos com cadáveres verdes perto
Quando os ventos traziam pêlos e desgraças

Deixando a sua mula devagar chegou a amante
A pequenos golpes de vento desamassava sua roupa de cor
E os pálidos amantes juntaram suas mãos dementes
A união de seus dedos foi o único ato de amor

Ela bailou imitando um ritmo de festança
Gritando faz cem anos que espero o teu apelo
Os astros da tua vida influíam na minha dança
Morgana contemplava do alto do monte Gibelo

Ah! como é doce dançar quando para você se declara
Uma miragem onde tudo canta e os ventos de horror
Fingem ser o riso da lua clara
E espantar os fantasmas com furor

Fiz gestos brancos longe das multitudes
As almas dos mortos corriam os pesadelos povoar-te
Minhas vertigens exprimiam as beatitudes
Que são todas nada mais que puro efeito da Arte

Nunca colhi senão a flor do espinheiro
Nas primaveras findas que queriam fenecer
Quando as aves de rapina do natimorto cordeiro
Clamavam o roubo e de crianças-deuses que vão morrer

E envelheci viste durante a tua vida danço
Mas eu cansaria cedo e o espinheiro em flor
Este abril teria a pobre confidência
De um corpo de velha morta imitando a dor

E suas mãos subiam como um vôo de pomba
Claridade sobre a qual a noite caiu feito um condor
E Merlim foi para leste dizendo: Que ele tomba
O filho da Memória igual ao Amor

Que suba do barro ou seja sombra de homem
Ele será meu filho minha obra imortal
A fronte ornada de fogo no caminho de Roma
Ele andará sozinho olhando o céu de cristal

A dama que me espera se chama Viviane
E venha a primavera das novas dores
Deitado na tussilagem e na manjerona
Me eternizarei sob os espinheiros em flores

Fonte: Apollinaire. 2005. Álcoois e outros poemas. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1912.

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