13 junho 2007

Pais e filhos

Christopher Lasch

A erosão da autoridade paterna e a delegação da disciplina a outras agências criaram um fosso ainda maior entre a disciplina e a afeição na família norte-americana – um resultado semelhante àquele deliberadamente criado pelo kibbutz israelense e por outras experiências de vida comunal. No kibbutz, segundo seus admiradores, a criança só vê os pais em cenários “afetivos”, ao passo que o treinamento higiênico e outras formas de disciplina são atribuídos a agências socializadas de educação infantil. Este arranjo supostamente poupa à família os conflitos que emergem quando as mesmas pessoas exercitam o amor e a disciplina. [...]

Estudos recentes sobre a juventude norte-americana mostram o quanto a prática se conforma estritamente a este ideal, ao menos superficialmente. Repetidamente, os jovens asseguram aos entrevistadores que as relações com seus pais são desprovidas de tensões, que suas famílias são “anormalmente normais” e que mesmo o frio distanciamento de seus pais não lhes provoca qualquer ressentimento. Entretanto, o aumento do suicídio entre os estudantes, da dependência de drogas e da impotência imediatamente coloca sob suspeita este quadro agradável. [...]

Na superfície, a juventude americana não parece experimentar uma grande fixação sexual por qualquer um dos pais; seus sonhos e fantasias, porém, trazem à luz sentimentos de raiva ou desejo que podem ser remetidos às primeiras fases da infância. [...]

A cultura popular manifesta a mesma cisão, tão pronunciada nas entrevistas psiquiátricas, entre imagens conflitantes da paternidade, entre a tranqüila superfície emocional da vida familiar e a raiva subjacente a ela. Filmes, quadrinhos e romances populares – particularmente os muitos romances de revolta adolescente que seguem o padrão de Catcher in the rye (O apanhador no campo de centeio), de J. D. Salinger – ridicularizam o pai “manifesto”, e a autoridade em geral, ao mesmo tempo que descrevem figuras paternas “latentes” com traços sinistros, agressivos, e caracterizadas como absolutamente inescrupulosas na perseguição que movem ao herói ou heroína. [...]

[...] Mas as coisas afinal de contas não são tão simples – mesmo em fantasias populares que não se destacam por sua complexidade emocional e profundidade moral. O mundo noturno do melodrama, do mistério, do crime e da intriga – que se alterna com a comédia de situação familiar como cenário da maior parte das obras de “entretenimento” popular – projeta na tira de quadrinhos ou na tela da televisão um mundo imaginário sombrio, onde as emoções mais profundas assomam à superfície. O melodrama policial traz à semiconsciência uma imagem paterna sinistra, enterrada mas não esquecida, sob o disfarce de um criminoso, de um “senhor do submundo” ou de um oficial de polícia que comete crimes em nome da justiça. Em The Godfather (O poderoso chefão), a identificação do pai ao chefão torna-se inconfundível; mas, de forma atenuada, ela sempre foi responsável pela excitação de que depende o thriller popular para seduzir um público de massa.
[...]

Fonte: Lasch, C. 1991 [1977]. Refúgio num mundo sem coração. RJ, Paz & Terra.

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