21 março 2007

Elegias duinenses

Rainer Maria Rilke

9.
Se é factível cumprir o tempo de existência
como loureiro, de verde um pouco mais escuro
que os outros verdes, e com folhas levemente onduladas
nas bordas (como um sorriso da brisa) –: por que então
ter de ser homem – que se esquiva do destino
e anseia por ele?...

Oh! não porque a felicidade exista, este
precipitado ganho sobre perda iminente. Nem porque se queira
satisfazer uma curiosidade ou exercitar o coração,
que estaria igualmente no loureiro...

Mas sim porque estar-aqui significa muito; porque todas
estas coisas efêmeras, que estranhamente nos concernem, necessitam
de nós, ao que parece. De nós, os mais efêmeros. Uma só vez,
cada uma delas, uma só vez. Uma vez só e nunca mais. E nós
também, uma só vez. Outra, jamais. Mas ter sido isso
uma
vez, uma só vez que seja:
ter sido terrestre não parece revogável.

E assim nos empurramos e queremos realizar
o terrestre, contê-lo em nossas mãos singelas,
o olhar repleto e mudo o coração.
Queremos nele nos transfigurar. – Para ofertá-lo a quem?
Melhor seria guardar tudo, para sempre. Ai, para o outro reino,
que é que se leva? Não a arte de ver
aqui aprendida devagar, nem nada aqui acontecido. Nada.
Não se levam as amarguras. Muito menos os momentos árduos
ou a longa experiência do amor – nada, pois,
do que seja indizível. E mais tarde, entre as estrelas,
para que levá-lo, se elas são ainda mais indizíveis?
Da beira da montanha, tampouco o caminheiro traz
um punhado de terra indizível até o vale; traz, isto sim,
uma pura palavra conquistada, a genciana
amarela e azul. Talvez estejamos aqui para dizer: casa,
ponte, fonte, porta, cântaro, janela, árvore de fruta –
quando muito: coluna, torre... mas para dizer, entende,
oh dizer o que as próprias coisas nunca
pensaram ser no íntimo. Pois não é recôndita
astúcia desta terra calada incitar os amantes
a sentirem como as coisas se encantam umas às outras?
Umbral: que importa, para dois
amantes, desgastarem eles também um pouco o mesmo
velho umbral de porta, como tantos antes
ou tantos depois deles... de leve.

Aqui
é o tempo do dizível, é aqui a sua pátria.
Fala, pois, e proclama. Mais que nunca,
ora perecem as coisas vivíveis, porque
aquilo que as desloca e substitui é um fazer sem alma.
Um fazer sob crostas que por si mesmas vão romper-se
assim que a ação reponte de lá dentro e se imponha outro limite.

Entre os martelos persiste
nosso coração, assim como a língua,
entre os dentes, continua a louvar,
malgrado tudo.

Louva o mundo para o anjo, não o indizível; com ele
não te podes gabar do esplendor do teu sentir; és apenas
um noviço no universo que ele sente com maior sensibilidade.
Mostra-lhe pois a coisa simples que, afeiçoada geração após
geração, vive como se fosse nova, ao alcance da mão, dentro do olhar.
Diz-lhe as coisas. Ele ficará tão pasmo como tu ficaste
com o cordoeiro de Roma e o oleiro do Nilo.
Mostra-lhe quão ditosa, quão sem culpa e nossa uma coisa pode ser;
como até a mágoa lastimosa se resolve numa forma pura
e serve como coisa e morre numa coisa – e se evade feliz
do violino para o além. E tais coisas, que vivem
do perecer, compreendem que as celebres; efêmeras,
crêem que nós, os mais efêmeros, podemos salvar.
Querem que em nosso invisível coração as transformemos –
oh infinitamente – em nós. No que possamos ser ao fim e ao cabo.

Não é isso que desejas, Terra: invisivelmente
renascer em nós? – Não é o teu sonho
ser invisível algum dia? Invisível, Terra!
Se não for metamorfose, qual tua missão inexorável?
Terra, amada, oh eu quero. Não é mais preciso, crê,
que as tuas primaveras me conquistem –, uma,
ah, uma só já é demasiada para o sangue.
Desde longe, obscuro, eu me entreguei a ti.
Estiveste sempre certa e tua sacra inspiração
é a familiaridade da morte.

Vê, eu vivo. De quê? Nem a infância nem o futuro minguam...
Inúmera, a existência
transborda-me do coração.


Fonte: Rilke, R. M. 1993. Poemas. SP, Companhia das Letras. A obra toda (também referida como “Elegias de Duíno”) consta de 10 elegias e foi originalmente publicada em 1923.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Linda Felipe, amei!!!
Precisamos mesmo de mais poesia e menos guerra em todos os sentidos, a começar pelas guerras internas...
Abraço, Jú.

26/3/07 13:42  

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