31 dezembro 2006

Nascimento de Vênus


Sandro Botticelli (1445-1510). The birth of Venus. Circa 1485.


Fonte da foto: The Artchive.

Frase, gramaticalidade e inteligibilidade

Othon M. Garcia

Dentro da liberdade de combinações que é própria da fala ou discurso – liberdade que permite a cada qual expressar seu pensamento de maneira pessoal, sem ter de repetir sempre, servilmente, frases já feitas, já estereotipadas – há certos limites imposto pela gramática, limites que impedem a invenção de uma nova língua cada vez que se fala. Nossa liberdade de construir frase está, assim, condicionada a um mínimo de gramaticalidade – que não significa apenas nem necessariamente correção (há frases que, apesar de, até certo ponto, incorretas, são plenamente inteligíveis). Carentes da articulação sintática necessária, as palavras se atropelam, não fazem sentido – e, quando não há nenhum sentido possível, não há frase, mas apenas um ajuntamento de palavras. “Cada qual é livre para dizer o que quer, mas sob a condição de ser compreendido por aquele a quem se dirija. A linguagem é comunicação, e nada é comunicado se o discurso não é compreendido. Toda mensagem deve ser inteligível”, diz Jean Cohen (Structure du langage poétique, p. 105-6).

O seguinte agrupamento, por ser totalmente caótico, isto é, totalmente agramatical, é totalmente ininteligível: de maus tranqüilos se nunca instintos os jovens sentem. Só reagrupadas segundo as normas gramaticais vigentes na língua, podem essas palavras tornar-se fala ou discurso, assumindo então feição de frase: Os jovens de maus instintos nunca se sentem tranqüilos.

Não obstante, um conjunto de palavras pode ter aparência de frase, por apresentar certo grau de gramaticalidade e ser dificilmente inteligível, como o seguinte exemplo de Oswald de Andrade: Romarias escadais de horas bureaus assinadores do conhecimento tomado e lavrado dos vencimentos invencíveis (Memórias sentimentais de João Miramar, p. 153). Apesar dos tênues vestígios de gramaticalidade – ou justamente por serem muito tênues esses vestígios – a frase de O. de A. depende quase que exclusivamente da interpretação que lhe possa dar o leitor. (...)

Portanto, ausência de gramaticalidade ou gramaticalidade muito precária significam ausência de inteligibilidade. Mas a simples gramaticalidade, o simples fato de algumas palavras se entrosarem segundo a sintaxe de uma língua para tentar comunicação não é condição suficiente para lhes garantir inteligibilidade. A célebre e assaz citada e comentada frase de ChomskyColorless green ideas sleep furiously (incolores idéias verdes dormem furiosamente) – apresenta os traços de gramaticalidade integral; no entanto, constitui (fora, evidentemente, do plano metafórico, onde todas as interpretações são possíveis) um enunciado incompreensível no plano referencial-denotativo, pois há incompatibilidade lógica entre os seus componentes, que se isoladamente têm sentido, no conjunto não têm: idéias não podem ser verdes nem incolores, e muito menos ser uma coisa e outra ao mesmo tempo. (...) Assim, por razões de impertinência semântica entre os seus componentes, esse conjunto de palavras só é frase na sua estrutura gramatical, mas só é mensagem no plano metafórico [...], só poderá ser entendida como um contexto poético, que depende fundamentalmente, predominantemente, da cultura e da subjetividade do leitor ou ouvinte, pois, como diz I. I. Revzin [...], “le poète crée un univers dans lequel se trouvent justifiées des phrases que n’avaient pas de sens dans sa langue”.
(...)

Fonte: Garcia, O. M. 2006. Comunicação em prosa moderna, 26a edição. RJ, Editora da FGV.

30 dezembro 2006

Estas

William Carlos Williams

são as semanas desoladas, escuras
quando a natureza na sua aridez
equivale à estupidez do homem.

O ano mergulha na noite
e o coração mergulha
mais fundo que a noite

para um lugar vazio, exposto
sem sol, estrelas ou lua
só uma luz rara como de pensamento

que gira um fogo escuro –
rodopiando sobre si mesma até que,
no frio, ela queima

para alertar um homem do nada
que ele sabe, não a solidão
em si – Não um fantasma mas

seriam abraçados – vazio,
desespero – (Eles
lamentam e assobiam) entre

os relâmpagos e estrondos da guerra;
casas em cujos quartos
o frio é maior do que se pensa,

se foram as pessoas que amávamos,
as camas deitadas vazias, as poltronas
umedecem, as cadeiras novas –

Esconda em algum lugar longe
fora da mente, deixe que crie raízes
e cresça, sem relação com ouvidos

e olhos ciumentos – por si mesma.
Na mina eles vieram a cavar – tudo.
É este o recibo para a música

mais doce? A fonte de poesia que
ao ver o relógio parado, diz,
Parou o relógio

que ontem batia tão bem?
e escuta o som das águas do lago
esguichando – é pedra agora.

Fonte: versão publicada antes na revista eletrônica Zunái e republicada aqui com o devido consentimento da tradudora, Virna Teixeira, a quem agradeço pela cortesia.

29 dezembro 2006

Vinte mil léguas submarinas

Júlio Verne

1.
Em 1866, os mares foram invadidos por algo que parecia sobrenatural. Talvez um animal ou um objeto gigantesco, maior e mais rápido que uma baleia. Navegava sob a superfície e à noite desprendia forte luminosidade.

Os primeiros registros do fenômeno ocorreram no oceano Pacífico. Depois, no Atlântico, do outro lado do mundo. O assunto tomou conta do noticiário dos jornais. As opiniões se dividiam. Uns acreditavam na veracidade dos relatos. Outros diziam que tudo resultava da imaginação dos navegantes ou dos jornalistas.
(...)

2.
Eu estava ainda no meu hotel em Nova York quando recebi uma carta da Marinha dos Estados Unidos. Convidava-me para acompanhar a expedição do Abraham-Lincoln.
Conselho! – chamei.
Conselho era meu criado, um rapaz dedicado que me acompanhava em todas as viagens de pesquisa. Estava no outro cômodo de minha suíte no hotel e não tardou a atender:
Sim, professor Aronnax?
Prepare nossas malas. Vamos embarcar hoje mesmo.
(...)

3.
Durante um bom tempo, a viagem do Abraham-Lincoln transcorreu sem incidentes. Seguimos para o Atlântico sul, ao longo da costa da América do Sul. Contornamos o cabo Horn e entramos no oceano Pacífico.
(...)

4.
A queda levou-me a tal profundidade que só a muito custo consegui voltar à tona. Após recuperar o fôlego, procurei localizar o navio no meio da escuridão. Consegui ver suas luzes já a uma boa distância. Nadei naquela direção, gritando:
– Socorro! Socorro! Estou aqui!
A roupa encharcada atrapalhava-me os movimentos. Seu peso puxa-me para o fundo. A água salgada entrou por minha garganta. Tomado pelo pânico, debati-me desesperadamente para tentar manter-me à superfície.
(...)

Fonte: Verne, J. 2003. Vinte mil léguas submarinas. SP, Scipione.

A horse with no name

Dewey Bunnell

On the first part of the journey

I was looking at all the life

There were plants and birds and rocks and things

There was sand and hills and rings

The first thing I met was a fly with a buzz

And the sky with no clouds

The heat was hot and the ground was dry

But the air was full of sound


I’ve been through the desert on a horse with no name

It felt good to be out of the rain

In the desert you can remember your name

’Cause there ain’t no one for to give you no pain

La, la...


After two days in the desert sun

My skin began to turn red

After three days in the desert fun

I was looking at a river bed

And the story it told of a river that flowed

Made me sad to think it was dead


You see I’ve been through…


After nine days I let the horse run free

’Cause the desert had turned to sea

There were plants and birds and rocks and things

There was sand and hills and rings

The ocean is a desert with its life underground

And a perfect disguise above

Under the cities lies a heart made of ground

But the humans will give no love


You see I’ve been through…


Fonte: álbum America (1979), do grupo America.


O sapo e a cobra

Lenda africana

Era uma vez um sapinho que encontrou um bicho comprido, fino, brilhante e colorido deitado no caminho.

Olá! O que você está fazendo estirada na estrada?

Estou me esquentando aqui no sol. Sou uma cobrinha e você?

Um sapo. Vamos brincar?

E eles brincaram a manhã toda no mato.

Vou ensinar você a pular.

E eles pularam a tarde toda pela estrada.

Vou ensinar você a subir na árvore se enroscando e deslizando pelo tronco.

E eles subiram.

Ficaram com fome e foram embora, cada um para sua casa, prometendo se encontrar no dia seguinte.

Obrigada por me ensinar a pular.

Obrigado por me ensinar a subir na árvore.

Em casa, o sapinho mostrou à mãe que sabia rastejar.

Quem ensinou isso a você?

A cobra, minha amiga.

Você não sabe que a família Cobra não é gente boa? Eles têm veneno. Você está proibido de brincar com cobra. E também de rastejar por aí. Não fica bem.

Em casa, a cobrinha mostrou à mãe que sabia pular.

Quem ensinou isso a você?

O sapo, meu amigo.

Que besteira! Você não sabe que a gente nunca se deu bem com a família Sapo? Da próxima vez, agarre o sapo e... bom apetite! E pare de pular. Nós cobras não fazemos isso.

No dia seguinte, cada um ficou em seu canto.

Acho que não posso rastejar com você hoje.

A cobrinha olhou, lembrou do conselho da mãe e pensou: “Se ele chegar perto, eu pulo e o devoro.”

Mas lembrou-se da alegria da véspera e dos pulos que aprendeu com o sapinho. Suspirou e deslizou para o mato.

Daquele dia em diante, o sapinho e a cobrinha não brincaram mais juntos. Mas ficavam sempre ao sol, pensando no único dia em que foram amigos.

Fonte: Bennett, W. J., org. 1997. O livro das virtudes para crianças. RJ, Nova Fronteira.

28 dezembro 2006

Los encuentros de un caracol aventurero

Federico García Lorca

Hay dulzura infantil

en la mañana quieta.

Los árboles extienden

sus brazos a la tierra.

Un vaho tembloroso

cubre las sementeras,

y las arañas tienden

sus caminos de seda

– rayas al cristal limpio

del aire –.

En la alameda

un manantial recita
su canto entre las hierbas.

Y el caracol, pacífico

burgués de la vereda,

ignorado y humilde,

el paisaje contempla.

La divina quietud

de la naturaleza

le dio valor y fe,

y olvidando las penas

de su hogar, deseó

ver el fin de la senda.


Echó a andar e internóse

en un bosque de yedras

y de ortigas. En medio

había dos ranas viejas

que tomaban el sol,

aburridas y enfermas.


“Esos cantos modernos

– murmuraba una de ellas –

son inútiles.” “Todos,

amiga – le contesta

la otra rana, que estaba

herida y casi ciega –.

Cuando joven creía

que si al fin Dios oyera

nuestro canto, tendría

compasión. Y mi ciencia,

pues ya he vivido mucho,

hace que no la crea.

Yo ya no canto más...”


Las dos ranas se quejan

pidiendo una limosna

a una ranita nueva

que pasa presumida

apartando las hierbas.


Ante el bosque sombrío

el caracol se aterra.

Quiere gritar. No puede,

Las ranas se le acercan.


“¿Es una mariposa?”,

dice la casi ciega.

“Tiene dos cuernecitos

– la otra rana contesta –.

Es el caracol. ¿Vienes,

caracol, de otras tierras?”


“Vengo de mi casa y quiero

volverme muy pronto a ella.”

“Es un bicho muy cobarde,

– exclama la rana ciega –.

¿No cantas nunca?” “No canto”,

dice el caracol. “¿Ni rezas?”

“Tampoco: nunca aprendí.”

“¿Ni crees en la vida eterna?”

“¿Qué es eso?”

“Pues vivir siempre

en el agua más serena,

junto a una tierra florida

que a un rico manjar sustenta.”


“Cuando niño a mí me dijo

un día mi pobre abuela

que al morirme yo me iría

sobre las hojas más tiernas

de los árboles más altos.”


“Una hereje era tu abuela.

La verdad te la decimos

nosotras. Creerás en ella”,

dicen las ranas furiosas.


“¿Por qué quise ver la senda?

– gime el caracol –. Sí, creo

por siempre en la vida eterna

que predicáis...”

Las ranas,

muy pensativas, se alejan,

y el caracol, asustado,

se va perdiendo en la selva.


Las dos ranas mendigas

como esfinges se quedan.

Una de ellas pregunta:

“¿Crees tú en la vida eterna?”

“Yo no”, dice muy triste

la rana herida y ciega.

“¿Por qué hemos dicho, entonces,

al caracol que crea?”

“¿Por qué?... No sé por qué,

– dice la rana ciega –.

Me lleno de emoción

al sentir la firmeza

con que llaman mis hijos

a Dios desde la acequia...”


El pobre caracol

vuelve atrás. Ya en la senda

un silencio ondulado

mana de la alameda.

Con un grupo de hormigas

encarnadas se encuentra.

Van muy alborotadas,

arrastrando tras ellas

a otra hormiga que tiene

tronchadas las antenas.

El caracol exclama:

“Hormiguitas, paciencia.

¿Por qué así maltratáis

a vuestra compañera?

Contadme lo que ha hecho.

Yo juzgaré en conciencia.

Cuéntalo tú, hormiguita.


La hormiga, medio muerta,

dice muy tristemente:

“Yo he visto las estrellas.”

“¿Qué son estrellas?”, dicen

las hormiguitas inquietas.

Y el caracol pregunta

pensativo: “¿Estrellas?”

“Sí – repite la hormiga –,

he visto las estrellas,

subí al árbol más alto

que tiene la alameda

y vi miles de ojos

dentro de mis tinieblas.”

El caracol pregunta:

“¿Pero qué son las estrellas?”

“Son luces que llevamos

sobre nuestra cabeza.”

“Nosotras no las vemos”,

las hormigas comentan.

Y el caracol: “Mi vista

sólo alcanza a las hierbas.”


Las hormigas exclaman

moviendo sus antenas:

“Te mataremos, eres

perezosa y perversa,

El trabajo es tu ley.”


“Yo he visto a las estrellas”,

dice la hormiga herida.

Y el caracol sentencia:

“Dejadla que se vaya,

seguid vuestras faenas.

Es fácil que muy pronto

ya rendida se muera.”


Por el aire dulzón

ha cruzado una abeja.

La hormiga agonizando

huele la tarde inmensa

y dice: “Es la que viene

a llevarme a una estrella.”


Las demás hormiguitas

huyen al verla muerta.


El caracol suspira

y aturdido se aleja

lleno de confusión

por lo eterno. “La senda

no tiene fin – exclama –.

Acaso a las estrellas

se llegue por aquí.

Pero mi gran torpeza

me impedirá llegar.

No hay que pensar en ellas.”


Todo estaba brumoso

de sol débil y niebla.

Campanarios lejanos

llaman gente a la iglesia,

y el caracol, pacífico

burgués de la vereda,

aturdido e inquieto

el paisaje contempla.


Fonte: Lorca, F. G. 2002. Os encontros de um caracol aventureiro. SP, Ática.


27 dezembro 2006

Dama com arminho


Leonardo da Vinci (1452-1519). Lady with an ermine. 1485.

Fonte da foto: The Artchive.

Canto gregoriano

Uwe Kraemer

O canto gregoriano (cantochão), isto é, o canto sacro monódico e em latim da Igreja Católica Romana, deve o seu nome ao Papa Gregório, o Grande que, por volta do ano 600, fez recolher e classificar os cantos das festas litúrgicas romanas. No século 9, esse repertório foi propagado, ao que tudo indica a partir do território franco, sob a autoridade do Estado e através das numerosas escolas, ligadas seja a mosteiros ou a catedrais. Essa música é dita “coral” porque ela se dava no coro da igreja, perto do altar, que é o centro cultual. O termo não indica, portanto, que ela fosse executada pelo conjunto dos fiéis. O repertório das peças gregorianas atualmente em uso esta fixado pelo Graduale Romanum de 1974. Ele lista inicialmente os cantos variáveis, ligados a uma festa ou a um santo particular – é o “Próprio” (Proprium) – e que diferem, tanto pelo texto como pela música, dos cantos regulares e imutáveis do “ordinário” da missa (Kyrie, Gloria, Sanctus, Agnus Dei).

A melodia gregoria não obedece ao nosso sistema tonal maior/menor, mas ao dos “tons” ou “modos” eclesiásticos, escalas diferenciadas entre si pela colocação dos semitons, e às quais eram por isso atribuídos efeitos morais diversos, tanto sobre o executante como sobre o ouvinte. Na melodia tonal as notas importantes são a última (finalis), a do recitativo (tuba ou repercussa), e a tenor (nota sustentada), situada na quinta superior do finalis, e em torno da qual a melodia evolui. Finalis e tenor desempenham um papel decisivo na determinação dos oito modos e seu caráter expressivo (dórico, hipodórico, frígio, hipofrígio, lídio, hipolídio, mixolidiano, hipomixolidiano). Assim, o sétimo tom (mixolidiano) passa por solene e radiante; o sexto (hipolidiano) por caloroso e introspectivo. Apesar da diversidade e da riqueza dos cantos gregorianos, pode-se neles identificar certos princípios gerais de construção: o “parallelismus membrorum” e a forma em curva ascendente e descendente. O primeiro é explicado por uma particularidade de estrutra dos Salmos, sejam eles de prece ou de meditação: em textos “paralelos”, cada uma das duas metades de um versículo ilumina e equilibra a outra, exprimindo uma idéia similar em palavras diferentes ou idéias diferentes em palavras similares (“Sanctus, sanctus, sanctus, Dominus, Deus Sabaoth”). Esse paralelismo do texto engendra uma divisão de curva musical em duas partes (ou mais). Nos textos mais longos ou nas melodias mais ornamentadas, é necessário introduzir-se um ponto de descanso (flexa) no meio de cada arco.
(...)

Fonte: capa do álbum Canto gregoriano (1987), do Coral da Schola da Hofburgkapelle de Viena.

26 dezembro 2006

Basta de poesia

F. Ponce de León

Basta de poesia
de apartamento,

gerada no sofá,
em meio a pêlos
de gato, vapores

e xícaras de chá


(Chá ralo, sorvido

em goles barulhentos,

servido em pires,

ao lado de bolachas

quadradas, sem gosto)


Chega de poesia

escondida em

gavetas, inspirada

em paredes

mofadas e porta-

retratos nas estantes


(Porta-retratos que

ostentam fulanos

notórios ou notórias

influências – mortas,

vivas, outras nem tanto)


Chega dessa poesia

de repartição,

rica em truques
e
malabarismos, escrita

em letra miúda, sob
o
peso (morto) do concreto


(Concreto lapidado

com cinzel de ouro,

prêmio de um desses

festivais arranjados

e que chegou pelo correio)


Basta! Poesia é para

ser escrita ao ar livre,

enfrentando o sol,

a chuva, o vento frio

das montanhas e os

abismos de alto-mar

Where the streets have no name

Bono

I want to run

I want to hide

I want to tear down the walls

That hold me inside

I want to reach out

And touch the flame

Where the streets have no name


I want to feel sunlight on my face

I see the dust cloud disappear without a trace

I want to take shelter from the poison rain

Where the streets have no name


Where the streets have no name

Where the streets have no name

We’re still building

Then burning down love

Burning down love

And when I go there

I go there with you

(It’s all I can do)


The city’s aflood

And our love turns to rust

We’re beaten and blown by the wind

Trampled in dust

I’ll show you a place

High on a desert plain

Where the streets have no name


Where the streets…


Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum The Joshua Tree (1987), do U2.

25 dezembro 2006

Cantiga de amigo

Elomar

Lá na Casa dos Carneiros
onde os violeiros
vão cantar louvando você
em cantiga de amigo
cantando comigo
somente porque você é
minha amiga mulher
lua nova do céu que já não me quer
dezessete é minha conta
vem amiga e conta
uma coisa linda pra mim
conta os fios dos teus cabelos
sonhos e anelos
conta-me se o amor não tem fim
madre amiga é ruim
me mentiu jurando amor que não tem fim

Lá na Casa dos Carneiros
sete candeeiros
iluminam a sala de amor
sete violas em clamores
sete cantadores
são sete tiranas de amor
para amiga em flor
qui partiu e até hoje não voltou
dezessete é minha conta
vem amiga e conta
uma coisa linda pra mim
pois na Casa dos Carneiros
violas e violeiros
só vivem clamando assim
madre amiga é ruim
me mentiu jurando amor que não tem fim

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Cantoria (1984), de Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai.

Ismália

Alphonsus de Guimaraens

Quando Ismália enlouqueceu,

Pôs-se na torre a sonhar...

Viu uma lua no céu,

Viu outra lua no mar.


No sonho em que se perdeu,

Banhou-se toda em luar...

Queria subir ao céu,

Queria descer ao mar...


E, no desvario seu,

Na torre pôs-se a cantar...

Estava perto do céu,

Estava longe do mar...


E como um anjo pendeu

As asas para voar...

Queria a lua do céu,

Queria a lua do mar...


As asas que Deus lhe deu

Ruflaram de par em par...

Sua alma subiu ao céu,

Seu corpo desceu ao mar...


Fonte: Mello, M. A., org. 2003. Poesia sempre. RJ, José Olympio.

24 dezembro 2006

Sagrada Família


Rafael (1483-1520). The Holy Family (Madonna with the beardless Joseph). 1506.


Fonte da foto: Beautiful Madonna Paintings.

Igrejas universais

Arnold J. Toynbee

(...)
As principais religiões elevadas que ainda sobrevivem são o hinduísmo, o judaísmo, o zoroastrianismo, o budismo, o cristianismo e o islamismo. (...)

O budismo, o cristianismo e o islamismo têm sido – ou se tornaram – integralmente universalistas. Cada uma dessas três religiões se decidiu a converter a humanidade; e, apesar de que a continuação da existência de todas as três é prova de que nenhuma teve êxito na realização de sua ambiciosa finalidade comum, cada uma delas conseguiu converter continentes inteiros, abarcando os domínios regionais de diferentes civilizações; e cada uma delas realizou isto por meio de veículos rudimentares de comunicação, únicos meios à sua disposição antes do “aniquilamento da distância” trazido pelo moderno avanço da tecnologia. (...)

As emoções humanas, a consciência e a vontade não são coletivas; mas sim faculdades de um ser humano individual; e a vida espiritual de uma pessoa – de cada pessoa que participa das relações sociais – é o campo em que deve ser travada a luta espiritual pelo autodomínio. Essa é a tarefa mais urgente do homem, e também a mais difícil. É difícil porque o homem é um ser vivo, e todo ser vivo é egocêntrico por natureza. O egocentrismo é, na verdade, outro nome para a própria vida e a vitória sobre tal estado de coisas é um tour de force. Entretanto, é apenas na medida em que um ser humano realiza esse tour de force que pode ter relações sociais satisfatórias com seus semelhantes – e o homem não pode estabelecer relações fora da sociedade. (...)

Na vida humana, o egocentrismo só pode não causar desastres na medida em que seja dominado na vida íntima espiritual de cada membro da sociedade. “O sofrimento é a chave do conhecimento”, e o espetáculo dos sofrimentos auto-infligidos, que destruiu sucessivas tentativas de civilização, abriu o olhos dos fundadores das religiões superiores. Eles entenderam que a salvação deve ser procurada, não no cmapo das relações sociais, mas no íntimo espiritual da pessoa, e que nesse campo a salvação só pode ser obtida pelo autodomínio. Essa é a razão pela qual esses videntes se dirigiram aos seus semelhantes, os seres humanos, como pessoas, e não como participantes da sociedade. É também a razão pela qual ensinaram que o autodomínio é indispensável pré-requisito para o estabelecimento de uma relação correta entre a pessoa humana e a suprema realidade espiritual.
(...)

Fonte: Toynbee, A. J. 1987. Um estudo da história. SP & Brasília, Martins Fontes & Editora da UnB.

23 dezembro 2006

Tecendo a manhã

João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Fonte: Melo Neto, J. C. 1994. Obra completa: volume único. RJ, Nova Aguilar. Poema originalmente publicado em 1966.

22 dezembro 2006

Our house

Graham Nash

I’ll light the fire,

you place the flowers in the vase

that you bought today

Staring at the fire

for hours and hours

while I listen to you

Play your love songs

all night long for me,

only for me


Come to me now

and rest your head for just five minutes,

everything is done

Such a cozy room,

the windows are illuminated

by the sunshine through them,

fiery gems for you,

only for you


Our house is a very, very, very fine house

with two cats in the yard,

life used to be so hard

Now everything is easy

’Cause of you

and our la, la, la…


I’ll light the fire,

while you place the flowers in the vase

that you bought today


Fonte: álbum Déjà Vu (1970), de Crosby, Stills, Nash & Young.


O lamentável expediente da guerra

Luiz Alberto Machado

Agora, falando sério: estamos em pé de guerra! Aliás, estamos mesmo no centro de uma terrível guerra. E mais: lívidos, transidos de pavor e com o coração na mão mediante as estatísticas mais desalentadoras, malgrado as convenções e tratados internacionais de paz, malgrado toda legislação regendo condutas e tudo o que se possa imaginar. Indubitavelmente é o paradoxo do gigantesco aparato da ordem produzindo a parafernália caótica da desordem. Acredite se quiser. É como se num caleidoscópio víssemos todas as agressões e vinditas, todos os sanguinolentos conflitos, remontando desde as campanhas do império assírio e neobabilônico, as greco-persas, as de Alexandre Magno, as púnicas, as do império romano, as invasões bárbaras e árabes, as cruzadas, as do império otomano, as dos sete, dos trinta e dos cem anos. Credite-se mais o sangreiro da revolução francesa, os conflitos da primeira e segunda grandes guerras mundiais, e as muitas que se fizeram e fazem eclodir depois da Organização das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como as do Vietnam, do golfo, a balcânica, a atual contra o terrorismo, fora as de sobrevivência na África e de outras regiões em conflitos eternos.

Parece-me, depois de tudo isso, que em nenhum momento a humanidade realmente gozou a paz. Há sempre o estrépito de um conflito aqui ou ali, no planeta.

Cá para nós, esses sangrentos ocorridos, principalmente os que se deram depois da última grande guerra até hoje, só invalidam todas as tentativas de respeito ao ser humano e à esperança de um mundo melhor e mais justo, discutindo-se, portanto, afinal, qual é mesmo o papel das Nações Unidas, se ela sempre sucumbe ao poderio hegemônico dos interesses mais aviltantes.

O desapontamento com desvario humano levara, por exemplo, Adorno a mencionar que não poderia haver mais poesia depois de Auschwitz. Realmente, um lamentável episódio na página da tragédia humana. Não só esse, como muitos e tantos outros registrados na crônica do inventário humano. E isto torna quase desnecessário dizer, para nossa maior incredulidade, que entre animais da mesma espécie, quase nunca o confronto aberto conduz à morte do opositor. Isto, claro, sem contar a domesticação de alguns animais pelo homem, prontos para a briga e o ataque, deixando-nos, enfim, parecer ser exclusiva ao ser humano a beligerância, e deixando antever a iminente degeneração nessa agressão violenta permitida, tornando a todos prisioneiros num barril de pólvora de uma guerra letal.

Dá-me a impressão de que quando pensamos que tudo está em ordem, o obscurantismo triunfa e o postulado de Sun Tzu está mais que vigente nesse tempo de desenfreada competição globalizada. Competir e vencer, como se isso fosse a razão da vida.

Resta-nos, em primeiro lugar, reavaliar sempre. Pois, remontando no tempo, Montaigne já revelava que “o crime nivela os cúmplices”, quando os tais sequiosos de glória ainda não satisfeitos, atiram-se como “quem não a tem ainda, procura alcançá-la a qualquer preço”.

Noutra observação, Hobbes também chegou a ponto de mencionar que o homem é mau e corrupto, justificando que “a competição pela riqueza, a honra, o mundo e outros poderes levam à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar, subjugar ou repelir o outro”. Arrematando: “(...) onde não há propriedade não pode haver injustiça”. Isso reiterado por Locke: “não haveria afronta se não houvesse a propriedade”. É o que nos deixa por conclusão a História da riqueza do homem, de Leo Huberman.

Não menos relevante foi Rousseau admitir que a capacidade humana chega ao cúmulo da autodestruição, porque “só o homem é suscetível de tornar-se imbecil (...) a ambição devoradora, o ardor de elevar sua fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para colocar-se acima dos outros, inspira a todos os homens uma negra tendência a prejudicar-se mutuamente”.

E Bergson, ao testemunhar os horrores da primeira guerra mundial, percebeu: “Hecatombes inauditas, precedidas dos piores suplícios, houveram ordenadas com inteiro sangue-frio (...) é curioso ver como os sofrimentos da guerra se esquecera depressa durante a paz (...) só que a guerra é feita com as armas forjadas por nossa civilização e o morticínio é um horror que os antigos não poderiam jamais imaginar”. As armas... as armas.

Em Camus encontramos que “a vida vale a morte; o homem é a madeira da qual se fazem as fogueiras (...) A própria guerra tem suas virtudes (...) porque existem imbecis desenfreados, que matam por dinheiro ou por honra (...) Ninguém pode ser feliz, sem fazer mal aos outros. É a justiça desta terra”.

É. Lamentavelmente é quando passamos a entender a idéia de Edgar Morin ao afirmar que ainda estamos na idade da pedra do conhecimento. E isto nos faz prever o pior, o de que, na saga humana, o homem nunca se libertará da barbárie, esta a razão de estarem sempre no centro dos conflitos, das hostilidades, dos antagonismos, das perversidades, da violência levada a extremos.

Resta-nos, de verdade, a dor da amargura e o repúdio à indiferença sobre o sangue derramado e os escombros de um verdadeiro assassinato do planeta, valendo-nos, ainda que tarde, da esperança, se bem que longínqua mas, com certeza, factível, de apostar na solidariedade humana e na emancipação do homem no direito de viver e deixar viver para a construção de um mundo melhor.

Fonte: texto enviado pelo autor, a quem agradeço pela cortesia. Publicado em outubro de 2005 como artigo na revista eletrônica Kplus Literatura.

21 dezembro 2006

Clube da esquina

Márcio Borges

Noite chegou outra vez
de novo na esquina os homens estão
todos se acham mortais
dividem a noite, a lua, até solidão
neste clube a gente sozinha se vê
pela última vez
à espera do dia naquela calçada
fugindo de outro lugar

Perto da noite estou
o rumo encontro nas pedras
encontro de vez
um grande país eu espero
espero no fundo da noite chegar
mas agora eu quero tomar suas mãos
vou buscá-la onde for
venha até a esquina
você não conhece o futuro que tenho nas mãos

Agora as portas vão todas se fechar
No claro do dia o novo encontrarei
e no Curral D’El Rey
janelas se abram ao negro do mundo lunar
mas eu não me acho perdido
do fundo da noite partiu minha voz
já é hora do corpo vencer a manhã
outro dia já vem
e a vida se cansa na esquina
fugindo, fugindo pra outro lugar

Fontes: álbum Coração de estudante (1985), de Wagner Tiso, e o livro Os sonhos não envelhecem (1996, Geração Editorial), de Márcio Borges.

Linguagem, língua e discurso

Celso Cunha

Linguagem é um “conjunto complexo de processos – resultado de uma certa atividade psíquica profundamente determinada pela vida social – que torna possível a aquisição e o emprego concreto de uma língua qualquer”. Usa-se também o termo para designar todo sistema de sinais que serve de meio de comunicação entre os indivíduos. Desde que se atribua valor convencional a determinado sinal, existe uma linguagem. À lingüística interessa particularmente uma espécie de linguagem, ou seja a linguagem falada ou articulada.

Língua
é um sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos. Expressão da consciência de uma coletividade, a língua é o meio por que ela concebe o mundo que à cerca e sobre ele age. Utilização social da faculdade da linguagem, criação da sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução, paralela à do organismo social que a criou.

Discurso é a língua no ato, na execução individual. E, como cada indivíduo tem em si um ideal lingüístico, procura ele extrair do sistema idiomático de que se serve as forma de enunciado que melhor lhe exprimam o gosto e o pensamento. Essa escolha entre os diversos meios de expressão que lhe oferece o rico repertório de possibilidades, que é a língua, denomina-se estilo.

A distinção entre linguagem, língua e discurso, indispensável do ponto de vista metodológico, não deixa de ser em parte artificial. Em verdade, as três denominações se aplicam a aspectos diferentes, mas não opostos, do fenômeno extremamente complexo que é a comunicação humana.
(...)

Fonte: Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6a edição. BH, Editora Bernardo Álvares.

20 dezembro 2006

Jogos infantis


Pieter Bruegel (c. 1525-1569). Children’s games. 1560.

Fonte da foto: The Artchive.

Fortaleza

Gildo Magalhães

Amo brincar na serra que ri verde

De frente cortada para o mar,

Seu peito antepara o sol.


Lá embaixo a areia branca

Se entrega aos dedos do mar;

Desarrumada e toda largada,

Espera que ele a toque:

Vai e volta o mar, fiel e não.


Nas brejaúvas e palmitos

Enrolados por liso véu,

Pula o tiê-sangue,

Arco que o vento entesa –


Saúdo-te, neblina cingindo a montanha,

Mas a manhã avessa espanta a névoa,

A mata brava se enche de azul e vida.


A serra, de costas para o país,

Olha a África e as ilhas da costa –

Assim também

Olho distante,

A transpor o oceano,

A me deixar,

Com saudade de não ir.


Fonte: Magalhães, G. 1987. Alquimista do tempo. SP, Roswitha Kempf Editores.

Impermanência

Silvia Rubião

Que as margens

devolvam ao percurso

o acumulado

restos de um tal rio

deserdado, que

mesmo por fluir, deixa

o leito escasso, quase estranho

embora brilhe

o limo desfolhado

posto à deriva

de um ponto cego onde

o vazio reencontra a sua via

impermanente


Algo que se adere

bordeja nas franjas

infenso a golpes

permanece

assim na superfície

ou apenas transparece

num vago alento, o que no fundo

recupera

ramagens esgarçadas

seixos intocados

ao negar nestes domínios o mesmo

que o corpo

tão afoito

na certeza de afogar-se

expõe a um só tempo

ainda agora, em outro extremo

em vão tenta diluir

a beleza irresoluta

que súbito
submerge

Fonte: poema publicado na edição de outubro de 2005 da revista eletrônica A máquina do mundo e republicado aqui com o devido consentimento da autora, a quem agradeço pela cortesia.

18 dezembro 2006

Dom Quixote

Miguel de Cervantes

1.
Numa pequena aldeia da Mancha, província espanhola, vivia um fidalgo. Um homem de costumes rigorosos e decadente fortuna. Dom Quesada ou Quixano – nunca ninguém soube ao certo – vivia da exploração de suas propriedades, que mal lhe rendiam para manter uma simples aparência de abastança. Homem forte, altivo e nervoso, cultivava a caça como esporte e como forma de abastecer melhor a sua mesa.
(...)

Ele possuia um pangaré que era usado nos serviços do sítio. O animal, apesar de magro e feio, pareceu um belo garanhão aos olhos do fidalgo. Depois de muito pensar, deu-lhe o nome de Rocinante. Esse nome lhe pareceu sonoro e adequado. Se antes havia sido um simples rocim, nada mais justo que agora fosse um Rocinante.

Batizado o cavalo, faltou-lhe um nome para si mesmo. Os nobres cavaleiros, personagens de seus livros, sempre trocavam os nomes. Ele deveria fazer o mesmo. Depois de oito dias remoendo o cérebro, encontrou um que lhe serviu como armadura da alma até o final de suas aventuras. Não seria mais simplesmente Quesada ou Quixano, e sim Dom Quixote. E, como faziam os cavaleiros andantes, juntou ao seu o nome do lugar de origem: Dom Quixote de la Mancha.
(...)

2.
Montado em seu Rocinante, Dom Quixote cavalgou pela estrada, depois de ter saído furtivamente pela porta falsa do curral. Vestida a armadura, cingiu a espada e, com a lança segura pela mão direita, sentiu-se o mais puro e valente cavaleiro do mundo. A facilidade com que consegui esqueirar-se de casa sem que fosse percebido, deu-lhe a certeza de sucesso em qualquer empreitada. (...)

3.
Dom Quixote de la Mancha não queria mais adiar a cerimônia que o faria um cavaleiro legítimo. Por isso pediu ao estalajadeiro que o acompanhasse até o estábulo e lá, ajoelhando-se imediatamente diante do homem, pediu:
– Não me levantarei jamas daqui, valoroso cavaleiro, se não me concederdes o dom de vos pedir algo que resultará em proveito vosso e grande benefício para a humanidade.
(...)

Fonte: Cervantes, M. 2001. Dom Quitoxe, o cavaleiro da triste figura. SP, Scipione.

Blood on the rooftops

Phil Collins & Steve Hackett

Dark and grey, an English film, the Wednesday Play

We always watch the Queen on Christmas Day

Won’t you stay?


Though your eyes see shipwrecked sailors you’re still dry

The outlook’s fine though Wales might have some rain

Saved again.


Let’s skip the news boy (I’ll make some tea)

Arabs and Jews boy (too much for me)

They get me confused boy (puts me off to sleep)

And the thing I hate – Oh Lord!

Is staying up late, to watch some debate, on some nation’s fate.


Hypnotised by Batman, Tarzan, still surprised!

You’ve won the West in time to be our guest

Name your prize!


Drop of wine, a glass of beer dear what’s the time?

The grime on the Tyne is mine all mine all mine

Five past nine.


Blood on the rooftops – Venice in the Spring

The Streets of San Francisco – a word from Peking

The trouble was started by a young Errol Flynn

Better in my day – Oh Lord!

For when we got bored, we’d have a world war, happy but poor

So let’s skip the news boy (I’ll go and make that tea)

Blood on the rooftops (too much for me)

When old Mother Goose stops – and they’re out for 23

Then the rain at Lords stopped play

Seems Helen of Troy has found a new face again.


Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Wind & Wuthering (1976), do Genesis.


Desarmar espíritos

Ademir Antônio Bacca

Há tiros nas ruas de Bagdá e Cabul
enquanto meninos russos correm nus
pelas ruas de Beslan
fugindo de balas perdidas.

De repente
parece que o relógio quebra o tempo
em duas partes,
uma marcando as páginas de jornal
com sangue inocente
a outra, enterrando de vez
nossas esperanças de paz.

Há tiros no Morro da Rocinha
e no subúrbio de Madri
enquanto crianças russas
são enterradas em Beslan
diante de nossos olhos estarrecidos.

Como ousar pronunciar a palavra paz
se não somos capazes de desarmar
nosso espírito de vingança?

Há medo nas ruas de Bagdá e Cabul
enquanto a paz se equilibra
num último fio de esperança em Tel Aviv,
à espera do próximo disparo.

Fonte: poema publicado na antologia Paz – Um vôo possível (2004, Editora Age) e republicado aqui com o devido consentimento do autor, a quem agradeço pela cortesia.

17 dezembro 2006

Trava-língua

Popular brasileiro

Num ninho de mafagafos,
tinha seis mafagafinhos,
também tinha magafaças,
maçagafas, maçafinhos,
mafafagos, magaçafas,
maçafagas, magafinhos,
isso além dos magafafos
e dos magafagafinhos.

Fonte: Azevedo, R. 2002. Armázém do folclore. SP, Ática.

16 dezembro 2006

Matando o tempo

Paul K. Feyerabend

4.

Em março de 1938, a Áustria tornou-se parte da Alemanha. Para algumas pessoas – uma pequena minoria –, isto era o fim da vida civilizada. Para outras, significava a libertação da tirania de um totalitarismo católico que governara a Áustria durantes anos. Outras ainda saudaram a unificação com o Grande Irmão e o aumento de poder que isto implicava. “Veja nossos aviões”, exclamavam elas quando a força aérea alemã voava sobre Viena. Havia rumores de progresso, de fim de estagnação, de grandes oportunidades. (...)


5.

Uma ambulância levou-me ao hospital de campanha. Fui despido e posto numa mesa de operação. Minhas pernas estavam em perfeita ordem – nem um arranhão nelas. “Foi uma bala”, disseram os médicos e mostraram-me onde ela havia entrado; um minúsculo buraco do lado direito, na região lombar. “Você está paralisado”, prosseguiram, “temos que abri-lo para ver se há outras lesões”. (...)


Recuperei-me logo mas fiquei paralítico da cintura para baixo. Não fiquei muito preocupado. Cheguei mesmo a ficar alarmado quando um dos meus dedos do pé começou a mover-se; “agora não, por favor”, eu disse; “não dá para esperar até o fim da guerra?” Não me incomodava ser um aleijado – estava contente, conversava com meus vizinhos de leito, lia romances, poemas, ensaios de todos os tipos. Schopenhauer foi um golpe; sua descrição das pessoas que se entopem inadvertidamente de leituras me servia sob medida. (...)


12.

(...)

Pouco a pouco fui me familiarizando com os “intelectuais”. Trata-se de uma comunidade muito especial. Escrevem de uma forma especial, têm sentimentos especiais e parecem se ver como os únicos representantes legítimos da raça humana, o que na prática significa de outros intelectuais. Eles não são cientistas, mas podem fazer panegíricos do progresso científico. Tampouco são filósofos – mas têm agentes infiltrados naquele negócio. Thomas Nagel é um deles; [Richard] Rorty, outro; mesmo [John] Searle se revela um deles, embora careça dos modos elegantes do verdadeiro intelectual. Esta comunidade passou nesse ponto a demonstrar um certo interesse por mim, o que significa que me alçou às suas alturas, me esquadrinhou rapidamente e me deixou cair de novo. Fez-me parecer mais importante do que jamais pensei ser; enumerou minhas deficiências e me pôs e novo em meu lugar original. Eles realmente me confundiram.

(...)


14.

(...)
Hoje creio que o amor e a amizade desempenham um papel importantíssimo e que sem eles mesmo as mais nobres realizações e os mais fundamentais princípios permanecem pálidos, vazios e perigosos. E ao falar de amor não me refiro a um compromisso abstrato tal como um “amor de verdade” ou um “amor da humanidade” que, tomados em si mesmos, têm freqüentemente estimulado estreiteza mental e crueldade. Tampouco me refiro aos fogos de artifício emocionais que se autoconsomem rapidamente. Não posso dizer verdadeiramente o que pretendo, pois isto circunscreveria e delimitaria um fenômeno que é uma mistura constantemente em mutação de solicitude e iluminação. O amor tira as pessoas de suas “individualidades” limitadas, expande horizontes e muda tudo que está em seu caminho. Todavia, não há mérito neste tipo de amor, ele não está sujeito nem ao intelecto nem à vontade; ele é o resultado de uma constelação afortunada de circunstâncias. É um dom, não uma conquista.
(...)


Fonte: Feyerabend, P. K. 1996. Matando o tempo: uma autobiografia. SP, Editora da Unesp.


15 dezembro 2006

Uma noite de Carnaval


Henri Rousseau (1844-1910). Un soir de Carnaval. 1886.

Fonte da foto: The Artchive.

Migrante

Virna Teixeira

pelo mar, a última
viagem

do convés, o vento

desenhos no azul
atlântico
água

fluida, a trilha
incerta

antes que em
terra, firme
lembrança

náusea, odor
de algas

Fonte: poema publicado no livro Distância (2005, 7Letras), de Virna Teixeira, e republicado aqui com o devido consentimento da autora, a quem agradeço pela cortesia.

Fire and rain

James Taylor

Just yesterday morning they let me know you were gone

Susanne the plans they made put an end to you

I walked out this morning and I wrote down this song

I just can’t remember who to send it to


I’ve seen fire and I’ve seen rain

I’ve seen sunny days that I thought would never end

I’ve seen lonely times when I could not find a friend

But I always thought that I’d see you again


Won’t you look down upon me, Jesus

You’ve got to help me make a stand

You’ve just got to see me through another day

My body’s aching and my time is at hand

And I won’t make it any other way


Oh, I’ve seen fire…


I’ve been walking my mind to an easy time

My back turned towards the sun

Lord knows when the cold wind blows it’ll turn your head
around
Well, there’s hours of time on the telephone line

To talk about things to come

Sweet dreams and flying machines in pieces on the ground


Oh, I've seen fire…

… that I'd see you, baby, one more time again, now


Thought I’d see you one more time again

There’s just a few things coming my way this time around, now

Thought I’d see you, thought I’d see you fire and rain, now


Fonte: álbum Greatest hits (1976), de James Taylor.


14 dezembro 2006

Guerra

Cecília Meireles

Tanto é o sangue

que os rios desistem de seu ritmo,

e o oceano delira

e rejeita as espumas vermelhas.


Tanto é o sangue

que até a lua se levanta horrível,

e erra nos lugares serenos,

sonâmbula de auréolas rubras,

com o fogo do inferno em suas madeixas.


Tanta é a morte

que nem os rostos se conhecem, lado a lado,

e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.


Oh, os dedos com alianças perdidos na lama...

Os olhos que já não pestanejam com a poeira...

As bocas de recados perdidos...

O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...


Tanta é a morte

que só as almas formariam colunas,

as almas desprendidas... – e alcançariam as estrelas.


E as máquinas de entranhas abertas,

e os cadáveres ainda armados,

e a terra com suas flores ardendo,

e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,

e este mar desvairado de incêndios e náufragos,

e a lua alucinada de seu testemunho,

e nós e vós, imunes,

chorando, apenas, sobre fotografias,

– tudo é um natural armar e desarmar de andaimes

entre tempos vagarosos,

sonhando arquiteturas.


Fonte:
Meireles, C. 1993. Poesia completa: volume único. RJ, Nova Aguilar. Poema originalmente publicado em 1945.


Peixes não voam

F. Ponce de León

A diferença mais notável
entre os peixes de água doce
e nós, seres humanos,
reside em nossa conhecida
mas inacreditavelmente
pouco aproveitada
capacidade de voar alto
sobre montanhas e mares salgados.

13 dezembro 2006

Casamiento de negros

Violeta Parra

Se ha formado un casamiento

todo cubierto de negro,

negros novios y padrinos

negros cuñados y suegros,

y el cura que los casó

era de los mismos negros.


Cuando empezaron la fiesta

pusieron un mantel negro

luego llegaron al postre

se sirvieron higos secos

y se fueron a acostar

debajo de un cielo negro.


Y allí están las dos cabezas

de la negra con el negro,

amanecieron con frío

tuvieron que prender fuego,

carbón trajo la negrita

carbón que también es negro.


Algo le duele a la negra

vino el médico del pueblo

recetó emplasto de barro

pero del barro más negro

que le dieron a la negra

zumo de maqui de cerro.


Ya se murió la negrita

que pena p’al pobre negro,

la echó dentro de un cajón

cajón pintado de negro,

no prendieron ni una vela

ay, qué velorio más negro.


Fonte: encarte que acompanha os LPs do álbum duplo Clube da Esquina 2 (1978), de Milton Nascimento. Canção originalmente gravada pela autora em 1953.

O horror econômico

Viviane Forrester

(...)
Discursos e mais discursos anunciando “emprego” que não aparece, que não aparecerá. Locutores e ouvintes, candidatos e eleitores, políticos e públicos, todos eles sabem, todos eles unidos em torno dessas palavras mágicas para, com motivações diversas, esquecer e negar esse conhecimento.


Essa atitude, que afasta o desespero por meio de mentiras, de camuflagem, de fugas aberrantes, é desesperada e desesperante. Correr o risco da exatidão, o risco da constatação, mesmo que levem a certo desespero, é, pelo contrário, o único gesto que, lúcido quanto ao presente, preserva o futuro. Ele oferece de imediato a força de ainda falar, de pensar e de dizer. De tentar ser lúcido, de pelo menos viver na dignidade. Com “inteligência”. E não na vergonha e no medo, encolhido dentro de uma armadilha a partir da qual nada mais é permitido.


Ter medo do medo, medo do desespero, é abrir caminho para as chantagens que conhecemos muito bem.


Os discursos que passam por cima dos verdadeiros problemas ou que os falseiam, que os fazem desviar para outros, artificiais, os discursos que repetem sem fim as mesmas promessas insustentáveis, esses discursos são passadistas e remexem sempre as mesmas nostalgias que utilizam. (...)


Esses discursos fazem o jogo dos partidos populistas, autoritários, que saberão sempre mentir mais e melhor. Ousar refletir na exatidão, ousar dizer o que cada um teme, mas sofre por pretender ignorar e por ver ignorado, só isso poderia talvez criar ainda um pouco de confiança.

(...)

Em vez de esperar, em condições desastrosas, os resultados de promessas que não se concretizarão, em vez de esperar em vão, na miséria, o retorno do trabalho, a rápida, chegada do emprego, seria por acaso insensato tornar decente, viável por outros meios, e hoje, a vida daqueles que, na ausência, dentro em breve, radical do trabalho, ou melhor, do emprego, são considerados decaídos, excluídos, supérfluos? Ainda é tempo de incluir essas vidas, nossas vidas, no seu sentido próprio, no seu sentido verdadeiro: o sentido, muito simples, da vida, da sua dignidade, de seus direitos. Ainda há tempo de subtraí-los ao bel-prazer daqueles que os ridicularizam.


Seria insensato esperar, não um pouco de amor, tão vago, tão fácil de declarar, tão satisfeito de si, e que se autoriza a fazer uso de todos os castigos, mas a audácia de um sentimento áspero, ingrato, de um rigor intratável e que se recusa a qualquer exceção: o respeito?

Fonte: Forrester, V. 1997. O horror econômico. SP, Editora da Unesp.


12 dezembro 2006

A máquina do mundo

Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco


se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas


lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,


a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável


pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar


toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.


Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera


e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos,


convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas,


assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco ou simples percussão

atestasse que alguém, sobre a montanha,


a outro alguém, noturno e miserável,

em colóquio se estava dirigindo:

“O que procuraste em ti ou fora de


teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

e a cada instante mais se retraindo,


olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,


essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo


se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste... vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo.”


As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge


distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos


e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber


no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar,

na estranha ordem geométrica de tudo,


e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que todos

monumentos erguidos à verdade:


e a memória dos deuses, e o solene

sentimento de morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,


tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana.


Mas, como eu relutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,


a esperança mais mínima – esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;


como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo tingir a neutra face


que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele

habitante de mim há tantos anos,


passasse a comandar minha vontade

que, já de si volúvel, se cerrava

semelhante a essas flores reticentes


em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,


baixei os olhos, incurioso, lasso,

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.


A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,


se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas.


Fonte: Andrade, C. D. 1995. Claro enigma, 10a edição. RJ, Record. Poema originalmente publicado em 1943.

eXTReMe Tracker