15 outubro 2006

Cataguases

Ascânio Lopes

Nem Belo Horizonte, colcha de retalhos iguais,
cidade européia de ruas retas, árvores certas,
casas simétricas,
crepúsculos bonitos, sempre bonitos;
nem Juiz de Fora: ruído. Rumor.
Apitos. Klaxons.
Cidade inglesa de céu enfumaçado, cheio de chaminés negras;
nem Ouro Preto, cidade morta,
Bruges sem Rodenbach,
onde estudantes passadistas continuam a tradição das coisas que já esquecemos;
nem Sabará, cidade relíquia,
onde não se pode tocar para não desmanchar o passado arrumadinho;
nem Estrela do Sul, a sonhar com tesouros,
tesouros nos cascalhos extintos de seu rio barrento;
nem Uberaba, nem, nem, cidades arrivistas, de gente que pretende ficar.
Não! Cataguases... Há coisa mais bela e serena oculta nos teus flancos.
Nas tuas ruas brinca a inconsciência das cidades
que nunca foram, que não cuidam de ser.
Não sabes, não sei, ninguém compreenderá, jamais, o que desejas, o que serás.
Não és do futuro, não és do passado, não tens idade.
Só sei que és
a mais mineira das cidades de Minas Gerais.
Nem geometria, nem estilo europeu, nem invasão americana de platibandas, nem bangalôs dernier-cri.
Tuas casas são largas casas mineiras feitas na previsão de muitos hóspedes.
Não há em ti o terror das cidades plantadas na mata virgem
nem o ramerrão dos bondes atrasados cheios de gente apressada.
Nem os dísticos de “aqui esteve”, “aqui aconteceu”.
Nem o tintim áspero dos padeiros.
Nem a buzina incômoda dos tintureiros.
Teus leiteiros ainda levam o leite em burricos.
Os padeiros deixam o pão às janelas (cidade mineira).
Teu amanhecer é suave.
Que alegria de só ter gente conhecida, faz teu habitante voltar-se para cumprimentar todos que passam.
Delícia de não encontrar estrangeiros de olhar agudo, esperto, mau, a suspeitar riquezas nas terras.
Alegria dos fordes, brincando (são dois) na praça.
(Depois vão dormir juntinhos numa só garagem.)
Jacaré!
João Arara!
João Gostoso!
teus tipos populares.
A criançada atira-lhes pedras e eles se voltam imprecando.
Rondas alegres de meninos nas ruas, às tardes, sem perigo de veículos.
Papagaios que se embaraçam nos fios da luz, balões que sobem,
foguetes obrigatórios nas festas da chegada do chefe político.
Jardins onde meninas ariscas passeiam meia hora só antes do cinema.
Ar morno e sensual de voluptuosidade gostosa que vibra nas tuas tardes chuvosas, quando as goteiras pingam nos passantes.
e batem isócronas nos passeios furados.
Há em ti a delícia da vida que passa porque vale a pena passar,
que passa sem dar por isso, sem supor que se vai transformando.
Em ti se dorme tranqüilo sem guardas-noturnos.
Mas com o cricri dos grilos,
o ram-ram dos sapos.
O sono é tranqüilo como o de uma criança de colo.
Vale a pena viver em ti.
Nem inquietude.
Nem peso inútil de recordações,
mas a confiança que nasce das coisas que não mudam bruscas,
nem ficam eternas.

Fonte: Ruffato, L. 2005. Ascânio Lopes: todos os possíveis caminhos. Cataguases, Instituto Francisca de Souza Peixoto. O poema foi dedicado pelo autor a Carlos Drummond de Andrade e publicado originalmente no jornal Diário de Minas (BH), em 6/3/1927.

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