20 outubro 2006

Canção para os fonemas da alegria

Thiago de Mello

Peço licença para algumas coisas.

Primeiramente para desfraldar

este canto de amor publicamente.


Sucede que só sei dizer amor
quando reparto o ramo azul de estrelas

que em meu peito floresce de menino.


Peço licença para soletrar,

no alfabeto do sol pernambucano

a palavra ti-jo-lo, por exemplo,


e poder ver que dentro dela vivem

paredes, aconchegos e janelas,

e descobrir que todos os fonemas


são mágicos sinais que vão se abrindo
constelação de girassóis gerando

em círculos de amor que de repente

estalam como flor no chão da casa.


Às vezes nem há casa: é só o chão.

Mas sobre o chão quem reina agora é um homem

diferente, que acaba de nascer:


porque unindo pedaços de palavras

aos poucos vai unindo argila e orvalho,

tristeza e pão, cambão e beija-flor,


e acaba por unir a própria vida

no seu peito partida e repartida

quando afinal descobre num clarão


que o mundo é seu também, que o seu trabalho

não é a pena paga por ser homem,

mas o modo de amar – e de ajudar


o mundo a ser melhor. Peço licença

para avisar que, ao gosto de Jesus,

este homem renascido é um homem novo:


ele atravessa os campos espalhando

a boa-nova, e chama os companheiros

a pelejar no limpo, fronte a fronte


contra o bicho de quatrocentos anos,

mas cujo fel espesso não resiste

a quarenta horas de total ternura.


Peço licença para terminar

soletrando a canção de rebeldia

que existe nos fonemas da alegria:


canção de amor geral que eu vi crescer

nos olhos do homem que aprendeu a ler.

Fonte: Freire, P. 1978. Educação como prática da liberdade, 8a edição. RJ, Paz e Terra. O poema foi originalmente publicado em 1965.

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